Majid Tafreshi, embaixador do Irão em Portugal há ano e meio, abriu as portas da sua residência oficial e serviu um longo pequeno-almoço a alguns jornalistas, cozinhado pela sua mulher, Parvaneh, que só no fim se apresentou, tímida.

Durante mais de duas horas, a conversa vagueou pela história do Irão e da Antiga Pérsia e pelos territórios que um dia fizeram parte desse império. Foi o mote para que o embaixador começasse a falar da ilegalidade da ocupação de terras palestinianas, um tema que ocupou grande parte da pequeno-almoço.

É impossível escapar ao tema da guerra no Médio Oriente, especialmente quando nos encontramos na “casa” do embaixador de um país que é uma potência regional numa zona em ebulição e financia vários pequenos exércitos que mantêm as suas próprias guerras em nome de interesses que têm em comum com o Irão, ainda que longe das fronteiras da República Islâmica.

Mesmo assim, Majid Tafreshi reforçou que o seu país acredita na paz, e não quer que a guerra vá mais longe do que já foi.Qualquer ataque ao Irão deve ter a sua resposta adequada, mas desejo que nunca aconteça uma catástrofe, porque as consequências serão cada vez mais dolorosas. É por isso importante que a comunidade internacional tente parar o agressor, a mesma entidade que ocupa Gaza, ocupou o Sinai, ocupa os montes Golã, e rejeitou já centenas de resoluções das Nações Unidas. Falemos do Irão, mas falemos também de quem está do outro lado”. Quem está do outro lado é a “entidade” Israel, não o Estado de Israel. O Irão não reconhece Israel porque diz que é também preciso que seja reconhecido, então, o Estado da Palestina.

O embaixador confessou sentir-se um pouco confuso com o facto de o reconhecimento da Palestina ainda ser um tema neste momento uma vez que, na sua opinião, na altura da partição do Mandato Britânico da Palestina (1947), os países das Nações Unidas reconheceram que naquelas terras iriam viver, no futuro, dois povos e nascer dois países. Não foi isso que aconteceu.

O papel de Portugal como mediador de um processo de paz é, ou pode ser, na visão deste professor de Política Internacional com dois doutoramentos, muito importante. “Muitos fóruns e reuniões importantes para todo o mundo, nos últimos 200 anos, aconteceram em alguns lugares que talvez não fossem previsíveis. Desse ponto de vista, esses gestos são bons e são gestos poderosos. E vocês conhecem a imagem de Portugal perante os outros países, especialmente os países do Médio Oriente, no meu país, e por isso penso que Portugal poderia ser uma boa base de localização para negociar qualquer disputa em todo o mundo, inclusive no Médio Oriente ou até mesmo sobre a Ucrânia”, disse aos jornalistas.

A Ucrânia, outro tema no qual o Irão não alinha com o Ocidente. O diplomata mostra-se até bastante orgulhoso da posição do seu país como tradicionalmente não alinhado e há-de lembrar várias vezes na conversa que o Irão nunca provocou outras nações, nunca tomou posições, nunca invadiu ninguém.

Quando questionado sobre se, então, é mentira que existam drones iranianos a seguir para os campos de batalha ucranianos, onde a Rússia os está a utilizar na guerra, o embaixador diz que esses acordos são legais.Nunca tomámos essa posição [de apoiar a Rússia]. Como sempre dissemos, encorajamos ambas as partes a negociar, em vez de pedir a alguns países da UE que aumentem as despesas com a Defesa. Existe uma cooperação militar baseada no direito internacional. É legal. Não se trata de apoio. Apoiar é fazer parte da guerra, mas nos últimos 300 anos nunca pertencemos a nenhum bloco de guerra, nem mesmo na primeira e segunda guerras mundiais”.

Majid Tafreshi avisa que não se deve perder de vista o que realmente, na sua leitura das coisas, provocou a guerra na Ucrânia. “A realidade é que a catástrofe na Ucrânia foi provocada pelo alargamento da NATO”, refere. O facto de que os países que hoje fazem parte da Aliança terem escolhido fazer parte dela, através da eleição de governos que tinham nos seus programas a adesão à NATO não parece alterar a sua leitura: “Se dissermos que há um perigo muito grande do outro lado, mesmo que não haja, claro que as nações vão optar por entrar na NATO”, rebate.

Um perigo como, por exemplo, a invasão da Crimeia? O tempo já vai longo e as perguntas são muitas. O embaixador pede apenas à comunidade internacional que abandone as armas. “Estamos agora a lutar por uma zona livre de armas nucleares, estamos de boa fé. Precisamos de ter o mundo livre da ameaça da destruição maciça”.

Alguns membros da Guarda Revolucionária têm defendido que o Irão deve abandonar a fatwa (uma espécie de lei emitida pelo líder supremo que pode obrigar ou proibir qualquer coisa) que proíbe o uso militar da energia nuclear. Mas o porta-voz do Ministérios dos Negócios Estrangeiros, Nasser Kanaani, negou que essa reversão esteja em cima da mesa.Em democracia, temos o direito de dizer o que quisermos, mas devemos basear-nos em algo. O veredicto do Ayatollah Khamenei é muito claro. É proibido”, reforça o diplomata.

Ainda com os microfones desligados, o embaixador tinha dito que o Irão não tem nenhum inimigo declarado e que viverá com qualquer vizinho que respeite as outras nações árabes à sua volta, e as muçulmanas também, o Irão é persa, e não árabe, apesar de a maoria ser xiita, um ramo do Isrão. “Temos de pedir, a todos, que parem de abusar da força e tentem respeitar o direito internacional, respeitem o Secretário-Geral [das Nações Unidas], não espezinhem os veredictos do Tribunal Internacional de Justiça, não matem os funcionários das Nações Unidas, não matem os médicos, não matem as pessoas. Os israelitas são tão poderosos, podem escolher especificamente as suas vítimas. Porque é que estão a matar crianças inocentes?”, pergunta.

Sobre o facto de o Hamas também ter morto israelitas de forma indiscriminada, o embaixador tem uma opinião menos direita, com mais nuances. Não diz diretamente que o 7 de outubro foi um ataque terrorista. Apesar de admitir que é uma forma compreensível de designar o evento, chama a atenção para o que veio antes. “Penso que se deve analisar porque é que isso aconteceu. A razão pela qual aconteceu, mesmo que se lhe chame um ataque terrorista, deve ser investigada. Não se pode usar esse nome [ataque terrorista] como justificação para retirar dois milhões de pessoas de suas casas, para matar, etc”.

No decurso da conversa pede muitas vezes aos jornalistas que não deixem de transmitir a sua ideia de que o Irão não deseja escalada. Questionado sobre por que razão, então, o Irão continua a apoiar o Hezbollah, o Hamas, os hutis e outras milícias que desestabilizam a região, relembra que estes movimentos têm o voto das suas populações [o Hamas e o Hezbollah são partidos além de milícias] e explica que a lei internacional permite “o apoio aos combatentes da liberdade”, e “àqueles que estão a tentar ter autodeterminação”, uma definição que abrange os movimentos acima citados. “Há quem esteja a fazer autodefesa, quem esteja a lutar pela autodeterminação e quem é ocupante. A essência de cada questão remonta a 70, 80 anos. Temos de fazer engenharia reversa e ver como podemos chegar à origem do problema e encontrar a verdadeira paz”.

Confrontado ainda com as notícias que dão conta de novas leis que apertam ainda mais as imposições à indumentária das mulheres, o embaixador nega que a violência contra mulheres que não usam hijab seja uma prática generalizada. “Precisamos de respeitar a diversidade de culturas. Não vos perguntamos porque é que bebem álcool e depois há acidentes na rua em que morrem muitas pessoas. Penso que o hijab é um traje que se baseia nos valores islâmicos, reconhecido na nossa Constituição. As pessoas votaram essa Constituição, em 1981. O hijab não é uma limitação, não é uma coisa de cinco quilos que se põe na cabeça. São 5 gramas, 10 gramas, um lenço com um vestido bonito que as mulheres no Irão respeitam, cerca de 85% dizem que respeitam essa tradição”, começa por argumentar.

E é seguro escolher não o usar? “Nunca prendemos ninguém. Não se trata de um crime codificado. Existe exagero em todo o lado, mas se algo aconteceu com um polícia ou dois polícias, isso não quer dizer que haja impunidade em todo o lado”, diz ainda, referindo outras tradições mais antigas de países ocidentais, como o lenço sobre a cabeça na missa, em Portugal, há algumas décadas ou a comida kosher dos judeus. Nos Estados Unidos, até aos anos 40, não se podia ir a praia com calções de menos de 40 centímetros. Lá porque na Europa não é tradição comer carne halal, não podemos dizer que os muçulmanos não podem comer carne halal. Os judeus têm a sua comida kosher também. Estes valores devem ser respeitados em qualquer parte do mundo.