Imagine-se o leitor a entrar num bloco operatório para uma cirurgia cardiotorácica. Ao invés de um cirurgião especializado, encontra um médico dentista e um enfermeiro veterinário, ambos sustentando que estudaram o procedimento e que, como profissionais de saúde, estão aptos a realizá-lo.

Imagine ainda deixar o seu carro numa oficina para corrigir um defeito no motor e, estando o mecânico de férias, descobre que o trabalho será feito pelo pintor e pelo eletricista da oficina, que garantem estarem habilitados para a tarefa.

Qual é o elemento comum nestas situações? A expectativa dos cidadãos de que cada necessidade seja satisfeita por profissionais capacitados, cuja formação rigorosa e orientação específica os prepare para a melhor execução da tarefa. Vem isto a propósito da pretensão constante de um texto recentemente publicado por um dirigente sindical da PSP em que se pugna pela atribuição às forças de segurança das competências investigatórias dos crimes relacionados com a imigração, designadamente o tráfico de seres humanos e o auxílio à imigração ilegal, as quais, desde a extinção do SEF e consequente integração dos seus inspetores na Polícia Judiciária (PJ), passaram a ser – e bem - matéria exclusiva desta polícia.

Coisa bem diferente de investigar, e que parece estar a ser confundida, é sinalizar situações que possam constituir tais crimes: isso sim, é função de policiamento de proximidade, e, sem dúvida, competência da PSP e da GNR. Sinalizar, dar notícia e denunciar formas graves de criminalidade é obrigação de todos os que – nos mais diversos ofícios, nos quais se incluem o controlo de fronteira, ou a fiscalização – percecionam a sua ocorrência. Já conduzir as complexas investigações que se seguem, é assunto completamente diferente.

Havendo um incidente que envolva um engenho explosivo, uma grave perturbação da ordem pública, ou até um simples carro a bloquear a saída da nossa garagem, será certamente com os agentes da PSP ou os guardas da GNR, devidamente formados e vocacionados para o efeito, que o cidadão conta, para intervir. Na mesma linha, é igualmente sensato e compreensível que as vítimas – ou possíveis vítimas – de crimes graves, complexos, violentos, organizados e transnacionais, tais como homicídios, crimes sexuais, tráfico de seres humanos, de estupefacientes ou de armas, terrorismo, crimes de ódio, cibercrime e criminalidade económico-financeira, esperem ser protegidas e que tais crimes sejam investigados por profissionais especializados.

Esses profissionais devem ter uma carreira, experiência e formação orientada para desenvolver, no quadro de uma instituição também para isso vocacionada, investigações complexas que levem os autores desses crimes à justiça. E é indubitável que, em Portugal, só o pessoal de investigação criminal da Polícia Judiciária tem este perfil.

Os cidadãos não esperam que, a reboque de um qualquer delírio aventureiro ou corporativista, sob o falacioso pretexto de uma “abordagem integral” (que a mera existência da AIMA torna inviável) se atribuam funções com esta sensibilidade e complexidade a quem para elas não está minimamente vocacionado e preparado. Isto apenas porque alguns acham – mal – que basta existir uma qualquer afinidade entre a investigação e as funções que já exercem.

Em síntese, achar que toda a criminalidade é igual e se investiga, por qualquer um, de igual forma e à mesma escala, é, não só falta de noção, mas também querer negar a justiça e a segurança que cabe ao Estado assegurar a todos.

Mais do que “conquistar” novas competências, as polícias devem preocupar-se em exercer com excelência aquelas para que existem, e que a lei lhes confere. Só assim poderão merecer a confiança que os cidadãos depositam nelas.

É esse o caminho.