"Daqui a 100 anos, queremos continuar a ser um grupo familiar de sucesso." A ambição de Vasco de Mello não é pequena, mas os mais de 125 anos que passaram desde que o bisavô, Alfredo da Silva, fundou o grupo empresarial que está na origem da CUF parecem bom augúrio. Nada que ver com sorte: a longevidade explica-se com o permanente questionamento que empurra para inovar a cada momento, com vista ao desenvolvimento, sem nunca perder o rumo ao propósito que está gravado no ADN da família.

"Duvidar e contrariar sistematicamente é fundamental", resume, em resposta ao SAPO, Vasco de Mello, quando a questão é como se equilibra tradição e inovação com vista à longevidade de uma herança que faz também parte do próprio tecido económico e social do país. "Não se transmite os valores da família numa caixa fechada", acrescenta Miguel Tamen, igualmente herdeiro de um capital cultural riquíssimo legado pelo pai, Pedro Tamen. "As famílias são animais poderosos que vão sendo acrescentadas pelas pessoas que nelas entram. A sabedoria passa por integrar pessoas e opiniões, maneiras de estar distintas a todo o momento. E de repente percebemos que mudámos. Mas tenho consciência de que os meus interesses também têm que ver com a família; sempre me dei conta de que tinha família um bocadinho excêntrica", ri-se.

O peso da herança, entre a tradição e a inovação foi o tema de mais uma conversa improvável, moderada pelo maestro Miguel Sousa Tavares e promovida pela Fundação Santander, com apoio do SAPO, nas Beyond Profit Talks, na qual Vasco de Mello recordou as origens, a perda e a reconstrução do grupo familiar, muito graças à tenacidade do pai, "uma pessoa com uma incrível capacidade de criação". "Muitos desconhecem que o pai era um artista. Ele era apaixonado pelo mar e sempre que velejava ia fazendo esboços da costa que ia vendo", exemplificou, para demonstrar a veia criativa e inovadora herdada, que se mostrou determinante na vontade de "reconstituir uma base empresarial para realizar seu propósito e ambição", logo que voltou a um Portugal de novo estabilizado após o 25 de Abril. Crítico do país, José Manuel de Mello dizia muitas vezes: "Devíamos ir para lá de Badajoz para ver o país com outra perspetiva", mas queria sempre voltar. E tinha sobretudo vontade de contar na construção do futuro do país. "Queria construir, a partir da CUF, o que  fazia falta a Portugal."

Também Miguel Tamen recorda como a herança paterna o marcou. O pai, um dos poetas mais reconhecidos na sua geração, "foi saneado" logo que a editora (Moraes) foi nacionalizada e acabou por ser "salvo" pela Gulbenkian e salvou. "Para meu horror, quando entrei na Gulbenkian (onde é diretor do Instituto de Estudos Avançados) percebi que tinha ali chegado 25 anos depois de o meu pai sair... e ainda apanhei por lá quem tivesse trabalhado com ele." Apesar de sentir o peso, Miguel conseguiu marcar o seu percurso na Gulbenkian, como a Universidade de Lisboa, apesar da entropia própria da academia. "As universidades são animais lentos e em Portugal isso soma-se à complicação adicional de nunca terem sido ricas o suficiente para serem independentes e sobreviverem à custa da sua produção intelectual. Na Gulbenkian o ritmo é diferente,  as coisas movem-se de outra forma, são feitas para durar." E realça: "O mais difícil não é criar ou acabar com coisas, é fazer que durem."

E disso sabe Vasco, seguindo o lema do pai, "o que o país não tem, a CUF cria", que diz juntar uma "oportunidade de negócio mas também um propósito", explica que essa longevidade se consegue sabendo ajustar-se aos tempos, o que hoje implica, para o grupo José de Mello, um maior foco, mas sem perder de vista a capacidade de inovar, os padrões de excelência e a atenção ao talento. Tratando-se de um grupo familiar, isso passa igualmente por envolver os muitos membros das novas gerações de uma família com 12 irmãos e 42 sobrinhos diretamente descendentes do pai, José Manuel. "É um desafio enorme, mas é preciso envolver para dar continuidade ao propósito", refere Vasco de Mello, explicando a decisão de, partindo do ensinamento do pai, criar um protocolo familiar que permitisse à família expressar a sua vontade de se manter como "família empresarial" e trabalhar no desenvolvimento interno, preparando as novas gerações "para serem muto bons acionistas no futuro".

No âmbito cultural, literário ou académico, esse tipo de planeamento não é fazível, mas Migue Tamen acredita que também há caminhos para prolongar e melhorar o percurso e a missão de uma universidade. "A melhor forma de o fazer é o país deixá-las em paz; as melhores universidades do mundo são as que foram deixadas em paz", diz; e explica: "As ideias melhores e as sugestões melhores nascem em ambientes sem pressão e sempre que há mt interferência as coisas correm pior. Não se pode pedir ao animal lento que é a universidade que responda em tempo real, a universidade deve até proteger-se das pressões do tempo real, ainda que possa desenvolver projetos de vanguarda" e não seja ignorante relativamente ao que está a acontecer a cada momento. É por isso que acredita que, ainda que deplorável na essência, a tentativa de interferência de Trump nas universidades não terá grande efeito. "Sítios como Harvard foram deixados em paz e têm tanto endowment que não terão grande problemas." Mas, vinca: "Toda a gente deplora, e bem, a atitude de Trump, mas por cá ninguém se escandaliza com as interferências contínuas do Estado, que determinar o que se pode estudar, que cursos podem abrir, quem pode ensinar o quê, etc. E essa interferência, que é tradição, é deplorável. É intervenção escusada" e uma tradição que merecia mudança, inovação, numa época em que os alunos são bem diferentes do que já foram.

"Esta geração de alunos tem geralmente pessoas muito mais autónomas, que fizeram mais, viveram em mais sítios do que as que as antecederam, que não olham para a vida como um emprego definitivo. O Erasmus foi das coisas melhores que a UE nos trouxe, porque abriu portas e transportou-nos para outro contexto — antes só se saía de Portugal por razões erradas, mas esta geração já esteve quase toda para lá de Badajoz. E isso fá-los olhar Portugal de forma diferente", conclui Miguel Tamen.

É também como uma resposta a esse novo mundo que Vasco de Mello justifica a diversificação do grupo que lidera. Não só estar em áreas tão distintas como a saúde e a indústria química dilui o risco de gestão do negócio como permite abrir portas de interesse diversificadas quer para a família quer para quem trabalha no grupo, criando incentivos muito atrativos para quem tenha ambição de se dedicar a oportunidades diferentes ao longo da vida. "Na Bondalti, por exemplo, estamos a inovar numa unidade de eletrolise que permitirá refinar e purificar lítio com vantagens económicas e de sustentabilidade. É uma solução aqui desenvolvida e estamos a investir muito nesse projeto para poder responder às necessidades europeias."

No fundo, equilibrar o legado com o futuro passa por nunca parar de criar, de inovar, de sair da bolha e ver o país de fora, procurar sempre respostas para os desafios de cada momento. "O encargo do legado é uma responsabilidade enorme e que implica também o cuidado de deixar algo significativo do que se recebeu para as gerações seguintes, mas se não se inovar, desaparece-se."