
No seu célebre "18 de Brumário de Luís Bonaparte", Karl Marx escreveu que “a tradição de todas as gerações mortas oprime, como um pesadelo, o cérebro dos vivos.” Há um paralelismo possível, e cruel, com o estado atual da esquerda europeia, em particular a portuguesa: não apenas carrega o peso simbólico do seu passado, como se recusa a reconhecer o presente. A esquerda está paralisada entre a nostalgia da sua relevância histórica e a recusa em “sujar as mãos” com a realidade atual. E nesta paralisia, cada vez mais irrelevante para os conflitos do mundo, vai-se afundando num suicídio lento, mas conscientemente cometido.
A narrativa política dominante sugere que vivemos uma ascensão global da direita populista. Mas talvez devêssemos reconfigurar esta equação: o que está a ocorrer, mais do que um avanço impetuoso da direita, é uma retração sistemática da esquerda. Uma retirada voluntária, acompanhada de um narcisismo performativo que prefere a derrota honrada à vitória impura. O espaço vazio que essa deserção cria está a ser ocupado, com naturalidade quase física, por discursos mais simples, diria, também, mais brutos, mas também mais eficazes, porque se apresentam como resposta concreta a angústias concretas.
Nas recentes eleições portuguesas, este fenómeno tornou-se mais difícil de ignorar. A geografia eleitoral do Chega começa a sobrepor-se, de forma inquietante, com os antigos redutos da esquerda: o Alentejo, os subúrbios de Lisboa, o interior empobrecido. Territórios onde a esquerda falava, antes, a linguagem do povo, e onde hoje é recebida com indiferença ou hostilidade. Não se trata apenas de uma mutação eleitoral. É uma mutação simbólica, talvez irreversível, na fidelidade sociológica de um eleitorado que, historicamente, confiava na esquerda para nomear as suas lutas.
Mas essa esquerda já não está lá. E não se trata apenas de ausência física, trata-se de ausência política, discursiva, simbólica. O que é que a esquerda tem hoje para oferecer a um trabalhador precário, a uma mãe solteira, a um jovem que não consegue pagar uma casa, a um reformado esquecido num bairro periférico? Fala-lhes de carbono. De linguagem inclusiva. De políticas de identidade. De uma Europa verde e digital. Discursos corretos, até nobres, mas destituídos de aderência à vida concreta das pessoas. Desprovidos de sensibilidade para a escala do quotidiano.
É preciso ser frontal: a esquerda, hoje, já não representa os pobres. Representa os formados. Os diplomados. Os que dominam o código simbólico da nova moral pública. Aqueles que sabem o que se pode dizer e o que é preferível calar. Os que se movem confortavelmente nas instituições e universidades, nas redações e fundações, nos fóruns internacionais. E, nesta transformação, a esquerda abandonou, sem cerimónia, os seus antigos aliados: os que não têm fluência na linguagem dos direitos identitários, os que não dominam o vocabulário da interseccionalidade, os que não compreendem, ou rejeitam, a lógica da nova ortodoxia moral.
Lamento, mas a esquerda tornou-se, para muitos, uma força censória. Não uma força de emancipação, mas de patrulhamento. O lugar onde se vigia a linguagem, onde se corrige a fala alheia, onde se presume superioridade moral. Já não se propõe a transformar o mundo: propõe-se a reeducá-lo. Mas o problema é fazê-lo com altivez, como se cada cidadão ignorante fosse um erro a corrigir. Esta esquerda não convoca o povo, interroga-o. Não o representa, adverte-o. Não escuta, classifica. É uma esquerda que prefere a estética da indignação à gramática do compromisso. Que substituiu a organização política por ativismo de hashtag. Que se refugia no conforto da bolha urbana, onde todos dizem as mesmas coisas, da mesma forma, e com a mesma convicção autorreferencial.
Nesse espaço de abandono, o Chega não oferece uma doutrina, oferece um reconhecimento. A direita populista compreendeu uma lição essencial que a esquerda parece ter esquecido: a política é, antes de tudo, simbólica. E o símbolo mais poderoso é o de dar nome ao sofrimento. Ventura, como antes Trump, Bolsonaro ou Le Pen, nomeia esse sofrimento, com distorções, com simplificações, mas também com eficácia. Fala a linguagem do ressentimento, da frustração, da raiva. E fê-lo, nos últimos anos, como está demonstrado pela últimas eleições, com mais escuta do que a esquerda.
O que está em causa não é apenas a perda de votos. É a perda de hegemonia cultural e simbólica. A esquerda perdeu o monopólio da luta de classes, essa luta que um dia foi o seu alicerce. E, talvez mais grave ainda, perdeu o monopólio da liberdade. Enquanto se entretém com cancelamentos, listas negras e vigilâncias retóricas, é o centro liberal, o mesmo que a esquerda historicamente combateu, que começa a posicionar-se como bastião das liberdades individuais, da liberdade de expressão, do pluralismo. É a inversão total do mapa político: a esquerda tornou-se desconfiada da liberdade, e a direita aprendeu a reivindicá-la como valor popular.
Há, evidentemente, causas justas que a esquerda continua a abraçar. A justiça climática. Os direitos das minorias. A defesa do Estado social. Mas estas causas, quando apresentadas com presunção moral e desligadas da experiência concreta das maiorias sociais, tornam-se abstrações. Tornam-se bandeiras estéticas. Perdem eficácia política. Pior ainda: geram rejeição. O discurso ambiental, quando vivido como imposição sacrificial e não como promessa de justiça, cria desconfiança. O discurso sobre imigração, quando tratado como dogma, e não como realidade complexa, gera medo. E esses medos, que a esquerda despreza como irracionais, são capturados com precisão cirúrgica pela nova direita.
A esquerda precisa de uma refundação. Não uma mera revisão estética, mas uma revisão estrutural. Precisa de reaprender a escutar, a negociar, a operar nas zonas cinzentas da vida real. Precisa de abdicar do seu narcisismo político e reconhecer que perdeu a centralidade do povo. E que, se não tiver a humildade de regressar ao terreno, de “sujar as mãos”, de perder debates e reconstruir alianças, será votada a uma irrelevância ornamental. Tornar-se-á uma força decorativa, útil apenas como espantalho para os populistas se legitimarem.
Porque o povo não é fascista. O povo é abandonado. E, na ausência de quem o represente, entrega-se a quem o reconhece, mesmo que com promessas falsas. O problema não está nas massas que votam mal, está nas elites que já não sabem falar a sua língua. O suicídio da esquerda não é o fim de uma ideia. É o fim de uma ligação. E talvez, se for capaz de reconhecer esse corte, possa ainda renascer. Mas só se abdicar da ilusão de que tem o monopólio do bem.
O tempo não está do lado da esquerda. Mas o povo, talvez, ainda esteja. Se a esquerda souber reaprender a ser imperfeita, plural, contraditória. E, acima de tudo, humana.