“Qualquer dia começam a vender-nos garrafitas com ar” - Old Tom Joad.

A frase acima, traduzida livremente para português, é uma citação do romance “The Grapes of Wrath” (“As Vinhas da Ira”). É pronunciada pelo patriarca Tom Joad quando, no decorrer da sua travessia em direção à Califórnia prometida, a família Joad se vê obrigada a pernoitar num parque de campismo improvisado enquanto os homens se esforçam por consertar um veículo moribundo no qual se deslocam. A noite passada debaixo duma árvore custa-lhes meio dólar, mossa considerável no orçamento da família, que a muito custo se arrasta para oeste, expulsa da sua terra para se inserir numa enorme fuga coletiva. “Sempre a fuga”, insiste Steinbeck.

“The Grapes of Wrath” é um romance do final dos anos 30. Retrata um período em que, confrontadas à penúria, seca e fome, famílias inteiras trocam o seu centro americano natal por uma longa estrada, na qual são ‘comoditizadas’ as suas mais humanas carências, como acima descrito. Na sua penosa odisseia em busca de algo melhor, estas famílias fazem face ao que de pior surge nos homens quando ameaçados pela escassez: erguem-se muros, viola-se a terra, criam-se divisões entre nós e eles, e as garantias e pertença que se julgavam inabaláveis revelam-se efémeras. A viagem da família Joad é marcada por tribulações recorrentes, havendo apenas algumas ocasiões em que conseguem, por um pouco, ir à superfície e respirar. O mundo à sua volta parece desenhado para os rejeitar, e a sua chegada a qualquer lado carrega a ironia de, por um lado ser forçada, e por outro ser recebida com hostilidade e repressão. A presença do Estado faz-se sentir apenas pelo seu mais imediato braço – a polícia – que age com o estrito desígnio de escudar os grandes proprietários, e quaisquer meios do mesmo Estado para apoiar estes migrantes à força ora não existem ora não estão ao seu alcance.

“The Grapes of Wrath” é um romance sobre a constante competição entre todos os homens, a artificial fabricação de escassez que fomenta essa competição, e ao mesmo tempo a criação moderna de entidades turvas – o Board of Directors, o Banco, em suma, “something more than men” - cujo maior triunfo é conseguir frustrar qualquer semblante de resistência que os seus lesados pudessem empreender, precisamente graças à sua natureza intangível. Diante dessa massa amorfa em que se movimentam os autores da miséria imposta, cai em ouvidos moucos o desespero dos sem esperança: “Where does it stop? Who can we shoot?”.

Estes, felizmente, são os dramas do passado. A Europa e o Portugal do século XXI não são, de modo algum, os Estados Unidos da década de 30. Volvidos quase 100 anos, em princípio não nos reconhecemos nestas demoras. Tivemos guerras e revoluções, golpes e manifestações. Concordámos coletivamente com algumas premissas básicas que ladeiam e estruturam o nosso modo de viver em conjunto, que constituem o nosso contrato com os outros e com o Estado. Consagraram-se o respeito pela dignidade de todos os seres humanos, a proibição dos abusos e da exploração do outro, a preservação da terra assim como a vemos hoje para que assim a possam ver os de amanhã, o limite de horas de trabalho, salários justos, tempo para descansar, liberdade para estar, ir e voltar, juntar e dizer, direito a um sítio para viver e ao qual pertencer. Sabendo de todos estes avanços, apoiando-nos nestas garantias, o presente e o futuro só podem ser lugares do bem, onde não se comoditizarão as carências. E ainda assim, é triste dizê-lo, as carências estão comoditizadas. Aos bocadinhos, vamos operando em contraciclo, à revelia das garantias. Num lugar em que tudo se compra e tudo se vende, nada se pode garantir, salvo a incessante competição entre os homens.

Naturalmente, listar todos os desvarios que evidenciam as clivagens sociais em Portugal seria uma tarefa demasiado morosa e aborrecida, e nem eu tenho tanto tempo livre. Além disso, dizer que os poderosos têm e podem mais que os outros é um lugar-comum que não oferece nada de novo. Porém, é indisputável que, à semelhança do que testemunhamos no romance de Steinbeck, os triunfos das elites em detrimento dos outros acontecem às claras, e perdura no ar uma sensação de impotência.

Um exemplo: no Portugal do século XXI surge talvez uma nova ideia brilhante: a de que em breve se poderá comprar dias de férias. Segundo alguns entendidos, parece que é coisa boa, boa para a saúde das empresas, dos “colaboradores”, da economia. Até parece que é mesmo coisa de economia desenvolvida, que já se faz em países mais crescidos do que este. Porém, tinha eu impressão de que nesse domínio a transação fluía no sentido contrário, ora, falamos de um ser humano que vende o seu tempo, talento e disponibilidade a troco de remuneração, pelo que em momento algum deveria esse ser humano ser colocado em situação de comprar de volta o seu tempo aos detentores do tempo. Isto porque, sabendo que alguns poderão mais que os outros, em breve veremos em empresas que enquanto um abastado se poderá dar ao luxo de comprar mais férias e regressar ao trabalho descansado e sereno, um outro menos sortudo não poderá abdicar dessa porção de salário, sofrendo a humilhação dupla de não só não poder beneficiar do mesmo tempo de repouso e lazer que um seu semelhante, como talvez de ter de suprir as necessidades deixadas por quem pôde beneficiar desse privilégio.

Outro exemplo: no Portugal do século XXI, somos volta e meia confrontados com decisões obscuras de poderes locais que, perturbados por os seus habitantes terem demasiado acesso livre e gratuito a essas zonas luxuosas como a floresta e a praia, lá oferecem umas concessões aqui e ali para que meia dúzia de milionários enriqueçam com a construção dos seus “eco-resorts” que agora empestam a nossa costa. Não interessam nada a perturbação visual ou auditiva daqueles espaços, nem interessa que a criação de novos epicentros de turismo desenfreado ameace a paz dos locais, ou que tudo seja feito ao arrepio de leis de conservação da natureza. Aqui, o lucro é que manda, e há ali tanto para lucrar.

Parece pequenino, e a alguns talvez seduza, mas à boleia destes exemplos vislumbram-se outros vícios, outros gatos que nos vendem por lebre. No Portugal do século XXI, a par das nossas justas inquietações com transições climáticas, inovações digitais e vidas dignas para todos, demoramo-nos também com o que é ser português, e quem merece andar por cá. Conceitos voláteis esses, pois agora ser português não será o mesmo que era há quinze dias, sendo que não só esse processo será burocraticamente dificultado, como se antecipa uma efetiva revogação de nacionalidade para quem seja responsável de crimes graves. Germina aqui a criação dum regime que permite a existência de portugueses literalmente de primeira e segunda, em que os direitos e deveres de uns não são os direitos e deveres de outros. Necessariamente, os alvos desta pequena guerra comprada pelo Governo português são os habituais bodes expiatórios, os que aqui estão para apanhar fruta, repor prateleiras, limpar escadas e entregar encomendas por tuta e meia (lembra-vos algum romance americano do século passado?). Em todo o caso, o que é que interessa taxar os grandes grupos com lucros sem precedentes e sedes fiscais em ilhotas perdidas no Atlântico quando o Amir ousa querer três refeições por dia, dormir num lugar com água canalizada, e ter os filhos na escola? Interessa pouco, e defender o Amir custa votos.

Em suma, tudo se pode por aqui. Compra-se o tempo, compra-se o espaço, compra-se a terra. Compra-se lugar na praia, lugar na fila, compram-se casas que ficam vazias. Perde-se a nacionalidade, mas se for preciso compra-se de novo. E o problema, a verdadeira injustiça de que as garantias não nos salvam, é que uma mão cheia de poucos comprará sempre muito mais que as mãos empobrecidas de todos os outros. No meio da cegueira e da competição desenfreada entre os homens, um dia olhamos à volta e terão comprado todas as dunas e areais, clareiras e arvoredos, ribeiros e pinhais. Até ver, compra-se, vende-se e hipoteca-se tudo neste infer-mercado à beira-mar plantado, e qualquer dia até nos vendem umas garrafitas com ar para respirar.