
No pico de uma primeira noite da Convenção Nacional Democrata, marcada pela celebração do percurso de Joe Biden, a outra “vice-presidente” dos Estados Unidos foi ao programa do apresentador Stephen Colbert - no mesmo dia em que também passou por lá Hillary Clinton -, manifestar o seu desejo de uma vitória de Kamala Harris nas presidenciais de novembro: “Espero um dia dizer: ‘senhora Presidente já não é uma personagem de ficção’”.
Quando Biden desistiu da corrida às presidenciais de novembro próximo, as redes sociais encheram-se de vídeos de Selina Meyer, a premiada personagem de Julia Louis-Dreyfus na série “Veep”, cuja ascensão meteórica à Casa Branca, de vice a Presidente, passou a ser vista como uma previsão (embora algo disfuncional) da subida ao poder da verdadeira vice-presidente. Mas, entre as mensagens de apoio da atriz a Kamala Harris e dos ‘clipes’ de Selina Meyer na Casa Branca - uma imagem que muitos esperam ver replicada após as eleições -, outro clipe da personagem da vice-presidente da série da HBO também foi muito partilhado, quase como um prelúdio para o que viria a ser a campanha.
Num episódio de 2014 dedicado ao tema do aborto, que a revista TIME considerou ser um espelho e sátira dos obstáculos que as mulheres enfrentam na política, Selina Meyer disse, com exasperação: “Eu não me posso identificar como uma mulher! As pessoas não podem saber isso. Os homens odeiam isso. E as mulheres que odeiam mulheres odeiam isso que, acredito, serão a maioria das mulheres”.
A luta entre uma candidatura liderada por uma mulher e Donald Trump, que tenta colocar-se como um ícone de masculinidade e virilidade, é um regresso a um passado recente. Em 2016, a candidatura de Hillary Clinton, a primeira mulher a ser nomeada por um dos dois principais partidos como candidata à Presidência, foi marcada por ataques de género, por comentários sexistas sobre as suas competências e sobre a sua relação com o Presidente Bill Clinton. Mas a antiga secretária de Estado fez questão de fazer da possível eleição da primeira mulher Presidente uma bandeira de campanha, e Michelle Obama respondeu ao teor tóxico da corrida com uma famosa citação: “Quando eles vão baixo, nós vamos alto”.
Há oito anos, contudo, o discurso “baixo” ganhou. Na altura, Trump também disse que Hillary era “uma mulher desagradável”. Dias antes da eleição, a jornalista Claire Cain Miller, do New York Times, explicou como este constante menosprezo e repúdio do candidato conservador tinham um impacto negativo na percepção pública sobre a capacidade de Clinton para liderar o país.
Mas existe uma diferença crucial entre a campanha de Hillary Clinton, que se fez representante das “mulheres e raparigas”, e a de Kamala Harris: é que a atual vice-presidente prefere que a bandeira do feminismo seja agitada pelas outras à sua volta.
Harris tem, no geral, evitado falar sobre a hipótese de ser a primeira mulher negra e asiática a ser eleita Presidente. Nos seus discursos, anúncios e comícios, a vice-presidente e ex-senadora da Califórnia tem-se focado no seu currículo, no seu percurso como procuradora, no seu plano económico e no risco que Trump representa para a democracia. É uma atitude, aliás, semelhante à de Barack Obama que, em 2008, fez pouco caso do potencial histórico de ser o primeiro Presidente negro, ignorando, em parte, o entusiasmo em torno dessa possibilidade e procurando convencer o eleitorado branco e moderado em votar numa pessoa racializada.
Para Carol Moseley Braun, antiga senadora do Illinois e a primeira mulher negra a ser eleita para o Senado, a estratégia de deixar que os outros pintem Kamala Harris como o rosto dos novos tempos nos EUA é “muito inteligente”, pois evita que a vice-presidente condicione a sua campanha ou antagonize cidadãos indecisos.
“Sinceramente, falar de ‘sou o primeiro negro isto’, ‘sou o primeiro aquilo’, não leva a lado nenhum. Encosta-te à parede e deixa-te aberto a ser acusado de ‘jogar a carta da raça’ [da expressão em inglês “playing the race card”], e ela não fez isso, o que é muito inteligente”, explicou Braun ao site Politico. E acrescentou que, este ano, “as pessoas estão mais abertas a votar numa mulher” para liderar o país.
Harris, ainda assim, tem deixado alguns comentários aqui e ali sobre o momento histórico que os Estados Unidos (e a própria) vivem. No seu site, é possível comprar uma t-shirt com a foto de uma jovem Kamala Harris, com a frase: “A primeira mas não a última”. Em maio, a vice-presidente falou com um grupo de organizações de comunidades asiáticas e das ilhas do Pacífico, e largou um palavrão para vincar a sua mensagem de esperança.
“Às vezes, as pessoas abrem-vos a porta e deixam-na aberta. Às vezes não o fazem, e aí precisam de partir a porra [fucking] da porta ao pontapé”, exclamou, segundo o The Guardian.
Sexismo? “Isso é estranho”, respondem as democratas
A economia, a inflação e a imigração são os temas que mais preocupam os eleitores nesta corrida às presidenciais de novembro, mas a dualidade entre uma campanha democrata encabeçada por uma mulher progressista, e uma campanha republicana encabeçada por um homem condenado por abuso sexual, não é ignorada pelos eleitores. Aliás, após a decisão do Supremo Tribunal em revogar o processo ‘Roe v. Wade’ e o direito federal ao aborto, para muitos eleitores, a escolha entre Trump e Harris é uma luta pelos direitos reprodutivos e igualdade de género das mulheres norte-americanas.
As sondagens mostram uma maior abertura dos norte-americanos em votar numa mulher para Presidente dos Estados Unidos, mas vários estudos também denotam uma divisão marcada entre as preferências políticas de homens e mulheres. Um estudo divulgado no início de agosto pela Universidade de Massachusetts concluiu que 51% dos norte-americanos concordam que “a América está pronta para eleger a sua primeira Presidente afro-americana”, e apenas 23% discordam. Mas, quando a escolha é entre Kamala Harris e Donald Trump, o “gender gap” é claro: uma sondagem de domingo da CBS News/YouGov dá uma vantagem de 56% contra 44% de Harris junto do eleitorado feminino, enquanto Trump surge à frente no eleitorado masculino com 54% contra 45%.
Em julho, o site Axios considerou que esta é uma eleição “rapazes vs. raparigas”, considerando que “nunca uma eleição foi tão definida” pela disparidade entre géneros.
Desde o momento em que Kamala Harris passou a ser a escolhida do Partido Democrata para a Casa Branca, Donald Trump tem passado o tempo a questionar a etnia de Harris, mas também as suas capacidades políticas e intelectuais como mulher. Nas últimas semanas, o ex-Presidente tentou usar uma antiga relação para atacar a sua adversária; chamou-a de “desagradável”, “burra” e até “cabra”, em privado; disse que os líderes internacionais a achavam um “brinquedo”, e, recentemente, alegou que era mais bem parecido do que Harris e que isso era um fator relevante.
J.D. Vance, o candidato republicano a vice-presidente, ridicularizou as mulheres democratas como “mulheres-gato solteironas”. O resto do Partido Republicano e os canais mais conservadores, como a Fox News, também não se deixaram ficar atrás em tentar tornar a eleição presidencial numa ‘batalha’ entre ideais progressistas e uma visão de uma América mais masculina, repetindo ad nauseam comentários sexistas sobre a ‘performance’ política de Harris ao longo dos anos.
Mas também aqui tem-se assistido a uma atitude bem diferente do que em relação a 2016. Há oito anos, estes comentários eram apenas condenados como escândalos incompreensíveis para o século XXI - como quando Trump foi apanhado a dizer que as “agarra pela vagina” [do inglês “grab them by the pussy]; em agosto de 2024, o chamar “estranho” (“weird”) e a sátira dos discursos dos republicanos têm sido mais eficazes, virando do avesso o comportamento dos candidatos para a reta final da corrida à Casa Branca.
“Não sei quem é que teve essa ideia, mas dou-lhes os meus cumprimentos. Tem frustrado os adversários, obrigando-os a amplificar isso ainda mais através de respostas desequilibradas”, comentou David Karpf, professor de comunicação estratégica na George Washington University, à Associated Press.
Já Amy Klobuchar, senadora do Minnesota e antiga candidata presidencial nas primárias de 2020 (precisamente contra Harris), também disse ao Politico que “em vez de dizer ‘oh não, isso é sexista!’, têm dito ‘a sério? isso é tão insólito e estranho’”. “Escolheram momentos para ignorar isso [os comentários sexistas], mas também [usaram] humor para os deitar abaixo”, analisou.
E a disparidade é tal que nem os homens democratas escapam aos comentários discriminatórios dos republicanos: Tim Walz, candidato a vice-presidente democrata, tem sido elogiado pela sua base por mostrar um reflexo de uma masculinidade mais empática, sensível, positiva. E, segundo a Bloomberg, esta diferença entre Walz e J.D. Vance tem “assustado” os republicanos, que ainda estão a tentar decifrar como atacar o governador do Minnesota.
Número de mulheres na política pode ter aumentado, mas Harris ainda tem de levantar a voz para falar
A derrota de Hillary Clinton foi uma desilusão para muitos, um retrocesso na luta por uma maior igualdade de género na representação política nacional e local. Mas também é um facto que, desde esse momento de inflexão, o número de mulheres na política norte-americana aumentou exponencialmente, logo nas eleições intercalares de 2018.
Em 2016, segundo dados do Center for American Women and Politics da Rutgers University, citados pela Forbes, as mulheres deputadas representavam apenas 20% do Congresso, menos de 25% dos cargos estatais, e apenas seis dos 50 governadores eram do sexo feminino. Nas “midterms” de 2018, um número histórico de mulheres decidiu ripostar contra a Administração de Donald Trump, concorrendo (e conquistando) um número recorde de cargos públicos. Em janeiro de 2019, o Nevada tornou-se no primeiro estado com uma assembleia maioritariamente feminina.
Hoje, 28% dos cargos no Congresso são ocupados por mulheres; nos cargos estatais, a percentagem saltou para 32,9%. Das 100 cidades mais populosas dos EUA, 34 são geridas por mulheres, e mais de metade dessas “mayors” são pessoas racializadas. Em 2024, o número de governadores é o dobro do que há oito anos.
O crescimento de Kamala Harris nas sondagens, e da afirmação de cada vez mais mulheres na liderança do Partido Democrata nos EUA, não significa, porém, que o trajeto rumo a uma representatividade política completamente paritária seja fácil.
Erica Wagner, escritora e colunista do Financial Times, escreveu no sábado sobre a forma como Harris tem procurado que a sua voz se ouça, levantando a voz e calando homens para poder ter tempo e espaço para explicar as suas políticas - uma atitude exemplificada nas suas respostas às interrupções do ex-vice-presidente republicano Mike Pence, durante o debate entre ambos em 2020.
Wagner considera que a forma confrontacional como Harris procura esse espaço, enquanto recusa fazer da sua campanha uma constante marcha feminista, demonstra precisamente o quanto mudou o posicionamento das mulheres no espaço político norte-americano. “O caminho será duro para Harris, já que Trump ainda tem muitos caminhos para a vitória. Mas não há dúvidas que o ímpeto da sua campanha e o facto de ser vista - mais do que Hillary Clinton alguma vez foi - tanto como uma mulher como uma pessoa, não é um pequeno feito”, disse.
Além das dificuldades de reconhecimento como iguais na política, subsistem ainda obstáculos burocráticos e financeiros à presença de mulheres em altos cargos. Meredith Kelly, uma democrata que trabalhou na campanha presidencial de Kirsten Gillibrand em 2020, explicou ao Politico que é mais caro fazer anúncios para mulheres. E, previsivelmente, os aspectos estéticos das candidatas são alvo de maior preocupação do que dos rivais masculinos.
“As mulheres são julgadas pelas palavras que dizem e como as dizem. E enquanto os homens são vistos como fortes quando atacam os seus adversários, as mulheres podem ser vistas como rudes se fizerem o mesmo. As candidatas e as suas equipas têm de pensar em cada manobra com uma lente diferente dos homens”, vincou Kelly, que admitiu que foi feito “muito progresso, mas ainda é um projeto em andamento”.