
Com o início do novo ciclo político em 18 de maio de 2025, o Estado português é convocado a repensar de forma estrutural o modo como regula, avalia e apoia o sistema de ensino superior. Este momento de renovação democrática deve ser aproveitado como oportunidade para enfrentar, com coragem e lucidez, as limitações do modelo atual de avaliação, sem cair na tentação de soluções apressadas ou meramente simbólicas, como a extinção da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), como alguns propõem, sem uma alternativa credível, ou a simples externalização do processo avaliativo para agências estrangeiras, desprovidas de conhecimento do contexto nacional.
Reformar é, portanto, mais do que reestruturar: é reconhecer a necessidade de uma mudança cultural e funcional, com base num compromisso coletivo com a qualidade, a transparência e a missão pública da educação superior.
Entre as questões que mais têm suscitado debate destaca-se o papel da A3ES. Criada para garantir a qualidade, a coerência e a credibilidade das formações académicas nacionais, a agência tornou-se também, para muitos, o espelho de um sistema excessivamente burocratizado, pouco responsivo à diversidade institucional e distanciado da realidade quotidiana das universidades e dos politécnicos.
Esta situação têm gerado frustração entre docentes e dirigentes académicos, que sentem que o esforço de inovação é frequentemente travado por uma cultura de conformidade e excesso de formalismo. Esta perceção, que não pode ser ignorada, tem alimentado propostas que vão desde a sua extinção até à transferência das funções de avaliação para entidades estrangeiras. No entanto, tais propostas, embora reveladoras de uma insatisfação legítima, carecem muitas vezes de fundamentação estratégica e de uma análise das consequências a médio e longo prazo para o sistema nacional.
Contudo, a substituição de uma entidade nacional por uma multiplicidade de agências externas, ainda que bem-intencionada, não resolve os problemas de fundo, apenas os desloca. Trata-se, afinal, de uma manifestação típica da delegação como fuga à responsabilidade: em vez de reformar e fortalecer as instituições, transfere-se a decisão para terceiros, esperando que a distância atenue o desconforto. Essa prática, embora compreensível em contextos de crise de confiança, acaba por criar sistemas mais opacos, fragmentados e difíceis de governar. Além disso, corre-se o risco de importar critérios avaliativos desajustados, que não consideram as especificidades pedagógicas, científicas e culturais das instituições portuguesas. A eficácia da avaliação depende não apenas da sua qualidade técnica, mas da legitimidade que lhe é reconhecida pelos seus destinatários.
Neste contexto, é essencial recuperar uma noção madura e exigente de delegação. Delegar não deve significar abdicar, mas antes partilhar, com critérios claros e mecanismos de responsabilização mútuos. A A3ES pode, e deve, ser reformulada, não para ser substituída, mas para ser requalificada. Essa transformação implica, antes de mais, reconhecer que um modelo de avaliação eficaz não pode assentar exclusivamente na padronização de métricas, na imposição de normas rígidas ou na aplicação indistinta de critérios internacionais. É fundamental introduzir uma abordagem mais flexível, responsiva e centrada na missão de cada instituição, promovendo a confiança e o sentido de pertença ao processo avaliativo. Isto requer também capacitação interna e formação contínua dos avaliadores, com vista a garantir coerência, justiça e compreensão profunda dos contextos avaliados.
A qualidade no ensino superior não é um conceito unívoco. O que é adequado para uma escola de engenharia com vocação internacional pode não ser pertinente para um curso de artes performativas ou para uma licenciatura em estudos locais. A obsessão por indicadores externos, frequentemente desligados do contexto nacional, tem gerado efeitos perversos: a "suberização" da academia, onde a flexibilidade esconde insegurança institucional e onde a busca por reconhecimento externo compromete a missão das instituições de ensino superior. Tal como os motoristas de plataformas digitais que subordinam a sua ação a algoritmos, também as instituições de ensino se veem pressionadas a alinhar com lógicas de mercado e rankings, sacrificando, muitas vezes, a sua identidade pedagógica e científica. A médio prazo, esta dinâmica compromete a diversidade, empobrece a criatividade e fragiliza a capacidade crítica do sistema universitário.
A reforma da A3ES deve partir de uma premissa fundamental: delegar não significa abdicar da responsabilidade, mas sim redistribuí-la de forma estratégica e monitorizada. O novo modelo de governança para a agência deverá incorporar três princípios essenciais: (i) Autonomia com responsabilização: A A3ES manterá a sua posição central no sistema, mas com mecanismos claros de prestação de contas e avaliação periódica do seu próprio desempenho. (ii) Pluralidade metodológica: Incorporação de diversas abordagens de avaliação que respeitem as especificidades disciplinares e os contextos socioculturais portugueses, sem abdicar do rigor académico. (iii) Internacionalização colaborativa: estabelecimento de parcerias com agências internacionais, não numa lógica de substituição, mas de complementaridade e enriquecimento mútuo.
A médio prazo, o objetivo deve ser construir um ecossistema de avaliação que promova o diálogo, a inovação e a excelência contextualizada. Um sistema em que delegar seja sinónimo de corresponsabilização, e onde o papel da A3ES não se esgote na supervisão, mas se afirme na promoção ativa da qualidade e da equidade. A avaliação deverá passar por um sistema híbrido que combine a expertise nacional com perspetivas internacionais. A A3ES deverá evoluir para um modelo de "meta-avaliação", onde coordenará painéis diversificados compostos por especialistas nacionais e internacionais, garantindo que as avaliações refletem tanto padrões globais quanto realidades locais.
Concretamente, propõe-se a criação de um Conselho Científico Internacional permanente dentro da estrutura da A3ES, com representantes de diversos sistemas educativos, que atuará como órgão consultivo. Este conselho não substituirá a tomada de decisão nacional, mas enriquecerá o processo com perspetivas complementares. Tal ambição exige também um novo pacto entre Governo, instituições e sociedade civil: um compromisso ético e político com a educação superior como bem público, e não como simples serviço. Este pacto deve assentar numa cultura de confiança, transparência e responsabilidade partilhada, capaz de alinhar as expectativas da sociedade com os objetivos estratégicos das instituições.
O investimento sustentado em ciência, ensino e inovação deve acompanhar a reforma dos modelos de avaliação, sob pena de se criarem sistemas que medem muito, mas transformam pouco. A lentidão decisória e a rigidez burocrática, frequentemente apontadas como fraquezas da A3ES, poderão ser ultrapassadas através de uma profunda modernização tecnológica, através da implementação de uma plataforma digital integrada que permita ter processos de avaliação contínuos em vez de episódicos, fornecer feedback em tempo real às instituições, fazer a uma monitorização transparente do progresso das avaliações e, essencialmente, reduzir significativamente da carga burocrática através de automatização inteligente. Esta transformação digital não visa apenas acelerar processos, mas fundamentalmente mudar a natureza da avaliação: de um evento pontual e stressante para um diálogo contínuo e construtivo.
Para evitar que a delegação se torne dependência, será essencial investir na capacitação das próprias instituições de ensino superior. Poder-se-á implementar um programa nacional de desenvolvimento de competências em autoavaliação e garantia de qualidade, permitindo que as instituições desenvolvam sistemas robustos de garantia interna de qualidade, participem mais ativamente no processo de avaliação externa e contribuam para a definição dos critérios e métodos de avaliação. Este programa de capacitação poderá ser apoiado por uma rede de mentoria interinstitucional, onde instituições com sistemas de qualidade mais desenvolvidos apoiarão aquelas em fase de consolidação.
A reforma proposta transformará a A3ES de um órgão primariamente regulador para um facilitador da qualidade no ensino superior. Este novo posicionamento manifestar-se-á através da criação de comunidades de prática entre instituições, a facilitação de benchmarking construtivo, a disponibilização de recursos e ferramentas para melhoria contínua e o reconhecimento e disseminação de boas práticas nacionais. Este modelo colaborativo reconhece que a qualidade não se impõe através de avaliações externas, mas constrói-se em parceria com as instituições, num processo de corresponsabilização.
O novo ciclo político que se inicia em maio de 2025 representa uma oportunidade única para esta transformação. Portugal pode, assim, desenvolver um modelo de avaliação e acreditação que seja simultaneamente rigoroso e sensível às realidades nacionais, global nas suas referências, mas local no seu impacto, exigente nos seus padrões, mas colaborativo na sua implementação.
A arte da delegação construtiva será, porventura, uma das pedras angulares do futuro do ensino superior português, um sistema que não transfere problemas, mas partilha responsabilidades na construção coletiva da qualidade académica.