
Estar na vida política e candidatar-se a um alto cargo público, em qualquer país, é equivalente a sujeitar-se a ter toda a sua vida digital vista e revista, em busca de momentos controversos. E, no caso de J. D. Vance, candidato a quem não falta pano xenófobo e misógino para mangas, graças a inúmeros discursos extremistas nos últimos anos, a maior controvérsia desde que foi nomeado passou a ser uma entrevista de 2021 à Fox News.
Ativistas, atrizes como Jennifer Aniston e Whoopi Goldberg, e líderes democratas como Hillary Clinton, condenaram o senador do Ohio de sexismo, depois de este ter descrito nessa entrevista um país liderado por mulheres solteiras amarguradas — e de ter feito comentários inusitados sobre Kamala Harris. Nas redes sociais, têm chovido críticas contra Vance, que foi escolhido por Donald Trump para ser o seu candidato a vice-presidente nas próximas eleições, em novembro deste ano, e nomeado há duas semanas pelo Partido Republicano.
O momento, gravado em 2021, quando Vance era apenas candidato a senador e recentemente “convertido” (palavras do próprio) à ideologia de Donald Trump, ocorreu durante uma entrevista na Fox News com outro conhecido nacionalista, Tucker Carlson. Os dois homens criticaram a liderança democrata dos Estados Unidos, mais inclusiva e diversificada, e Vance disse: “Estamos a ser liderados por mulheres-gato solteironas, que são infelizes nas suas próprias vidas e nas escolhas que fazem, e querem que o resto do país seja infeliz também.”
Vance ainda identificou Harris — que é madrasta de duas crianças com o marido, Doug Emhoff —, a congressista Alexandria Ocasio-Cortez (que tem 34 anos e não tem qualquer papel de liderança nos democratas) e Pete Buttigieg (secretário dos Transportes que é assumidamente homossexual) como exemplos de que “o futuro do Partido Democrata é controlado por pessoas sem crianças”.
“Como é que faz sentido que tenhamos dado o nosso país a pessoas que não têm um investimento direto nele?”, questionou ainda Vance.
Atrizes criticaram, família de Harris defendeu-a e Buttigieg fala em palavras “ofensivas”
É verdade que o senador do Ohio é já conhecido por promover as mensagens de Donald Trump, atirando-se contra migrantes, contra a comunidade queer, contra políticas de inclusão social ou contra o aborto. Mas o ataque com base na quantidade de filhos de pessoas de esquerda enfureceu muitas mulheres.
Algumas queixaram-se das expetativas sociais sobre a sua fertilidade. Outras pelo senador promover a ideia de que apenas pessoas com filhos podem desempenhar cargos públicos com mérito e compaixão. A voz mais forte tem sido a de Jennifer Aniston, a atriz norte-americana que apontou para a sua própria luta para ter filhos e contra as tiradas da imprensa e dos tabloides sobre a sua fertilidade.
“Não acredito que isto venha de um potencial vice-presidente dos Estados Unidos. Rezo para que a sua filha tenha a sorte de ter os seus próprios filhos um dia. Espero que ela não tenha de recorrer à fertilização in vitro como segunda opção, porque também está a tentar tirar-lhe isso”, afirmou Aniston numa publicação no Instagram, apontando ainda o dedo às políticas de saúde dos republicanos.
A atriz Whoopi Goldberg também lamentou a entrevista de Vance e, no programa “The View”, afirmou que “há pessoas que optaram por não ter filhos por qualquer motivo”. “Há pessoas que querem ter filhos e não podem. Como se atreve?”, atirou.
Já Hillary Clinton, a antiga senadora e a primeira mulher a ser nomeada por um dos dois principais partidos para ser Presidente dos EUA, deixou uma mensagem curta e irónica na rede social X. “Que tipo normal e simpático que certamente não odeia que as mulheres tenham liberdade”, comentou Clinton.
Dada a menção à vice-presidente e candidata à Casa Branca, a família de Kamala Harris saiu a correr em sua defesa. A mãe das duas enteadas de Harris, Kerstin Emhoff, enviou um comunicado à CNN, no qual considerou que os ataques eram “sem fundamento” e elogiou a vice-presidente por “ter sido uma parente comigo e com o Doug” durante os anos de adolescência de Cole e Ella.
“Eu adoro a minha família misturada e estou muito grata por tê-la”, acrescentou.
Ella, uma das enteadas de 25 anos e ativista, partilhou uma imagem no Instagram, em que identificou Kamala por “Momala” e escreveu que adorava “os três pais”. “Como é que se pode ser ‘solteirona’ quando se tem dois miúdos fofos como o Cole e eu?”.
Pete Buttigieg mostrou-se muito mais furioso com os comentários de J. D. Vance e, em entrevista à CNN, explicou que as palavras tinham sido “ofensivas”, já que ele e o marido tiveram problemas em adotar os dois filhos nesse mesmo ano. “Ele não podia saber disso, mas se calhar também não devia falar dos filhos das outras pessoas”, vincou o secretário dos Transportes.
Comentários sexistas podem complicar campanha republicana em que aborto é assunto por definir
Apesar da aparente controvérsia, esta não seja a primeira vez que J. D. Vance confunde a queda na natalidade com a sua luta partidária — nem a mais berrante. E, tendo em conta as suas posições extremistas sobre direitos reprodutivos, para muitos também não serão surpreendentes.
Num discurso em 2021 que também foi entretanto ‘desenterrado’ e partilhado pelas redes sociais, J. D. Vance defendeu que a “esquerda sem crianças” não tem um “compromisso físico no futuro do país”. E, para contra-argumentar com a sugestão de que pessoas a partir dos 16 poderiam votar (algo que já é feito em países como a Alemanha, Roménia ou Áustria), sugeriu antes que “devíamos dar o controlo desses votos aos pais das crianças”.
“Se forem votar neste país como um pai, deviam ter mais poder neste país. Se não tiverem feito um investimento no futuro, se calhar não deviam ter a mesma voz”, disse, citado pelo “Washington Post”.
Os comentários são particularmente relevantes para esta eleição, já que uma parte considerável do eleitorado norte-americano (especialmente das mulheres) coloca o assunto dos direitos reprodutivos e do direito ao aborto como o tema mais importante em jogo nas próximas presidenciais.
Donald Trump, apesar da sua base de fãs ultraconservadora, tem sido muito pouco claro na questão do aborto e do papel dos estados. Vance tem-se colocado do lado do ‘patrão’, mas alguns especialistas apontam que a posição intransigente e ortodoxa do senador quanto ao papel da mulher na sociedade poderá criar um rombo na máquina do Partido Republicano, numa altura em que o ex-Presidente sente cada vez mais dificuldades em convencer eleitoras.
Em 2022, quando foi eleito senador pelo Ohio, J. D. Vance concorreu sob uma política de total oposição ao direito ao aborto, incluindo em casos de incesto e de violação (e exceto quando a vida da mãe está em perigo). Nesse ano, elogiou o Supremo Tribunal por revogar o processo “Roe v. Wade” e defendeu uma proposta de um colega ultraconservador, Lindsey Graham, para proibir a nível nacional o aborto após as 15 semanas de gestação.
Noutro podcast, gravado em janeiro de 2022 e citado recentemente pela CNN, Vance disse: “Eu certamente gostaria que o aborto fosse ilegal a nível nacional.”
Segundo uma sondagem da Gallup realizada em junho deste ano, 32% dos eleitores norte-americanos devem votar apenas em candidatos que defendam a sua posição relativamente ao aborto. O força do tema do aborto no voto torna-se ainda maior quando os eleitores são a favor da legalização, e mais de metade dos inquiridos (54%) relevou que era “pró-escolha”.
Quanto ao eleitorado feminino, segundo uma sondagem recente da CNN, cerca de 50% das mulheres registadas para votar apoiam Kamala Harris, enquanto que 45% prefere Trump — a mesma empresa apontou para uma percentagem de voto de 46%, tanto para Biden como para Trump, quando o Presidente ainda estava na corrida. O número de Harris salta para 54% quando se considera todo o eleitorado feminino.