Chegámos um pouco antes das nove da manhã à sede da Servilusa para acompanhar Nuno Coutinho, tanatopractor da empresa, nas suas primeiras tarefas diárias. À porta de um amplo armazém vão chegando carrinhas funerárias que trazem, ou recolhem, urnas. É aqui que Nuno começa o seu dia de trabalho numa profissão que ainda causa muita estranheza. “Eu convivo com a morte todos os dias. Não é igual para uma pessoa comum que se calhar só vê um corpo de ano a ano, ou de dois em dois anos”, diz-nos.
A morte sempre conviveu à mesa com Nuno, pois o pai era soldador de urnas para jazigos e motorista de carros funerários. “Esta área já me é familiar desde miúdo”, conta.
Quando entrou para o ramo funerário, aos 21 anos, foi também como motorista destas carrinhas. “O meu primeiro dia foi em Cascais, fui buscar um corpo ao cemitério da Guia. Nunca tinha visto um autopsiado e aí sim, foi um bocado mais chocante. Lembro-me do cheiro…”, relembra.
Mais tarde, em 2007, a empresa propõe-lhe tirar o curso de Tanatopraxia, em Barcelona, ministrado pelo Instituto Francês de Tanatopraxia. Hoje em dia as coisas modificaram-se, mas na altura o curso era de um ano. “Começámos com a parte teórica. Trabalhámos muitas horas, começávamos às sete da manhã e só saímos de lá às sete da noite. Aprendemos a anatomia do corpo humano, todas as artérias, veias, músculos, tecidos, tudo e mais alguma coisa”, lembra. Este sim era um mundo novo para Nuno. “Depois de passarmos na teoria, tínhamos de fazer 100 tanatopraxias, era obrigatório, antes de irmos para exame. Nunca mais me esqueço deste número”, partilha.
O gosto começou a desenvolver-se e um ano depois, com 27 anos, Nuno torna-se tanatopractor para estranheza de alguns amigos. “As pessoas acham que somos mórbidos”, diz.
Numa definição simples descreveríamos o tanatopractor como um especialista na técnica de conservação de cadáveres com o propósito de retardar o processo de decomposição, mas Nuno acrescenta: “os responsáveis pela última imagem que se vai ter daquela pessoa.”
A tanatopraxia: o serviço que devolve dignidade a quem a vida lha tirou
A prática da tanatopraxia tem sido acolhida por várias famílias que valorizam esta última imagem. Só a Servilusa efetuou quase 4000 tanatopraxias no ano passado e, este ano, o número tem previsão de aumentar. E, ao contrário do que se possa pensar, este serviço não é utilizado apenas para casos de grande complexidade, como num acidente grave, é até mais comum em casos em que “o corpo já está numa decomposição muito avançada devido a doença”, conta o tanatopractor.
Entramos com o Nuno numa sala, igual a tantas outras, onde há material de escritório como arquivadores, folhas com tabelas e ecrãs de computador com ficheiros abertos. “A primeira coisa que eu faço quando aqui chego é agarrar na documentação que chegou dos meus colegas para preencher a nossa folha de trabalho”, diz-nos. Nem todos os processos que ali estão, com dados dos falecidos, têm este serviço de tanatopraxia por isso o tanatopractor só pode trabalhar nos ficheiros que têm essa informação. “Uma coisa muito importante é ter esta autorização de tanatopraxia, sem ela não podemos agarrar em nenhum corpo”, diz. Esta é uma autorização muito importante uma vez que numa intervenção destas há procedimentos sem retorno. “Se vamos agarrar num corpo sem esta autorização, estamos a fazer uma profanação de cadáver. E é muito grave”, acrescenta.
Em caso de o corpo ter sido autopsiado, tem de haver uma autorização extra do médico do Instituo de Medicina Legal e, neste caso, o tanatopractor terá de abrir o corpo na sua totalidade. “ Quando vem de uma autópsia, o trabalho é mais complexo. O corpo vem cosido de cima a baixo, as artérias estão todas cortadas, a parte de dentro está toda liberta. Numa situação normal, só abrimos num sítio e fazemos uma pequena incisão”, explica Nuno.
"Nunca podemos trabalhar num corpo com menos de seis horas da hora de falecimento"
Nuno agarra no processo e encaminha-se para outra sala, onde vai preencher a tabela que será a sua guia de trabalho. Ali coloca o nome da pessoa que faleceu, a data do falecimento, o que é preciso ser feito e a hora a que o corpo tem de sair para ser velado.
Nesta folha estão ainda contempladas opções como barba, cabelo ou manicure e colocam-se vistos naquilo que é necessário ter em atenção. “Nos homens, às vezes há necessidade de fazer ou aparar a barba; nas mulheres, posso ter de remover o verniz das unhas ou pintá-las. Há quem também possa pedir um penteado especial para o seu ente querido ou uma maquilhagem diferente com batom, por exemplo”, explica Nuno. Chamou-nos a atenção um espaço de serviços adicionais como a impressão digital. “Isto é um serviço em que é possível numa peça de joalharia, de prata ou ouro, imprimir a impressão digital da pessoa para ficar de recordação. Aqui o tanatopractor é quem tira a impressão digital do falecido, temos um objeto com uma espécie de cera quente onde pomos o dedo e fica lá a impressão e damos ao colega que vai levar para um molde”, explica.
Neste mesmo campo, aparece também uma opção onde se pode ler “pacemaker” e, caso também tivesse um visto, o tanatopractor já saberia que teria de o remover por questões de segurança, caso o corpo fosse cremado, e também por questões ambientais caso o corpo fosse sepultado.
O primeiro corpo de Nuno, do dia de hoje, é de uma senhora que faleceu no dia anterior, certamente há mais de seis horas. “Por lei, nunca podemos trabalhar num corpo com menos de seis horas da hora de falecimento. Por exemplo, a pessoa faleceu às duas da manhã, eu só posso pegar no corpo a partir das oito da manhã. Nos hospitais isso é fácil de acontecer [passar mais de seis horas após o óbito]; agora a nível de residências e lares, às vezes não”, explica.
Além do serviço de tanatopraxia, pedido pela família, este caso tem também a indicação de que é requerida a maquilhagem simples e um vestido azul. Provavelmente o seu preferido, ou o que usou num evento especial, ou apenas o que assentava melhor nesta fase da vida. Podemos imaginar e inventar mil e uma histórias para esta senhora que, apesar de Nuno já só a conhecer sem vida, tem por ela o mesmo respeito que teria em vida. “Está ali uma pessoa que teve uma história e nós temos que preservar essa história.”
“O meu trabalho é ajudar a manter a identidade e quando chega à igreja aquela é a mesma pessoa aos olhos dos outros”
A primeira coisa a fazer quando entra nesta sala de tanatopraxia é fardar-se: põe uma bata, calça dois pares de luvas e coloca a máscara FFP3. Depois encaminha-se para um armário onde no cimo está um rádio. “Não há muita conversa durante o serviço e por isso há que distrair a cabeça”, explica enquanto o liga.
Já completamente equipado e com a companhia radiofónica começaria o seu dia normal, contudo por questões de respeito e privacidade não fomos autorizados a assistir ao trabalho real no corpo, e Nuno limita-se a explicar-nos passo a passo o seu trabalho. “Começo por pôr o corpo em cima da minha bancada, verifico a pulseira, para confirmar que o nome é este, e começo a higienização do corpo com os produtos próprios.”
A intervenção de tanatopraxia é um procedimento uniformizado, isto é, os passos estão definidos e todos cumprem da mesma forma, em qualquer parte do mundo. “E é sequencial, todos fazemos os passos na mesma ordem”, diz Nuno ao aproximar-se da bancada.
Na bancada de inox, com acesso a água, podemos ver vários instrumentos como bisturis, tesouras, pinças ou agulhas e ao lado numa bancada repleta de produtos. Esta podia perfeitamente ser uma bancada de qualquer cirurgia, não fosse já não bater nenhum coração nela. “Depois da higienização começamos então a intervenção da tanatopraxia”, explica. “Começamos por fazer uma pequena incisão, ou na carótida ou na artéria femoral ou humoral, também depende da pessoa em si”, diz. A incisão na carótida seria mais eficaz, contudo quando se trata de uma senhora, Nuno optaria pela femoral, porque “normalmente têm um decote ou uma camisola mais aberta e é mais visível; nos homens como têm, normalmente, camisa e gravata consegue-se disfarçar pelo colarinho”, clarifica.
Depois da incisão feita, seja em que artéria for, será injetado o líquido de conservação, à base de formol, que está armazenado numa máquina. “Automaticamente enquanto vai entrando o líquido, vai saindo o sangue. Enquanto estamos a dar a injeção vamos também massajando o corpo com um bocado de creme para ir ajudando o líquido a entrar”, explica Nuno.
O processo de decomposição do corpo começa mal o coração deixa de bater, deixando de haver circulação sanguínea e oxigénio. Com a falta de oxigénio no sangue os vários tecidos e órgãos começam apodrecer e um dos primeiros sintomas é a descoloração da pele. Daí este líquido ser fundamental na conservação do corpo. "O próprio líquido de conservação já tem uma coloração o que vai ajudar a ter uma aparência mais normal”, conta.
A aspiração do sangue é outro procedimento fulcral para o retardamento da decomposição, “porque é o sangue que nos vai acelerar a decomposição, então, quanto mais rápido conseguirmos tirar a maior parte do sangue, melhor. Nunca tiramos a 100 %, mas tiramos 80, 90%”, explica. Nesta aspiração também são retirados outros líquidos do corpo humano. “Isto tudo também é uma questão de higiene para não apodrecer e evitar os cheiros, porque os gases deixam sair muito cheiro”, conta.
Não só a cor, mas também a temperatura corporal, gélida, e a rigidez dos músculos que deixaram de conseguir articular, apontam-nos para a decomposição do corpo e, também por isso, a atenção ao detalhe, o respeito por o corpo que está inerte e a dedicação são características fundamentais para se ser um bom tanatopractor.
“Mais vale perder um bocado de tempo do que estarmos aqui a despachar, porque aquela pessoa tem a sua dignidade, não é? É a sua identidade que está na minha mão e o meu trabalho é ajudar a mantê-la para quando chegar à igreja ser a mesma pessoa aos olhos dos outros”, diz Nuno que em média, por dia, diz fazer quatro intervenções de tanatopraxia, ainda que o número possa variar consoante o número de mortos ou o estado de decomposição dos corpos.
“Há certas situações em que ainda me faz confusão”
Para os mais sensíveis, talvez o passo que se segue pode ser o mais impressionante. “Depois de injetarmos o líquido e aspirarmos os líquidos corporais, passamos ao tamponamento do corpo, ou seja, vamos fechar todos os orifícios, não só aqueles que abrimos nesta intervenção, ou os cateteres que tenham tido, como também tamponamos a boca, o nariz, o ânus e a vagina”, esclarece Nuno. Este é um procedimento normal para evitar odores, como também o vazamento de alguns líquidos que possam ter ficado no corpo. Fio de suturas, gel, compressas, algodão ou adesivos transparentes, “muito fino que não se nota” seriam agora os materiais utilizados por Nuno.
Terminado este procedimento transfere-se o corpo para uma maca onde o tanatopractor vai finalizar a sua intervenção. “Fazemos a secagem do cabelo e pomos creme hidratante porque a pele fica extremamente seca”, acrescenta. “E aqui acaba o serviço da tanatopraxia e o corpo já está 90% apresentável para a família.”
Há quinze anos na profissão, Nuno confessa que a morte já não lhe é estranha, mas há sempre situações mais complicadas do que outras. “Ver crianças ainda me toca muito”, conta. Nuno é pai de duas meninas, de 10 e 14 anos e a proximidade com as idades das filhas torna-se difícil. “Claro que tentamos sempre meter a nossa parte pessoal e o nosso espírito mais de fora, mas às vezes é difícil e estamos a trabalhar, a olhar e a pensar que tinha uma vida toda pela frente… e está ali”, suspira.
Catarina, colega de Nuno, prepara-se para começar o seu serviço de hoje. Uma urna separa-nos e junto dela está nova folha de papel dentro de uma mica. É o guia de informações. Morreu o pai, avô, tio, irmão, amigo, colega estimado de alguém. Há uma barba por fazer, e uma memória boa para criar apesar da morte nem sempre ajudar a que assim seja.
“Temos de tratar um corpo como em vida, como se fosse o nosso próprio familiar ali deitado”
Entramos na sala onde os cabides cheios de sacos com roupa, sapatos e acessórios não deixam enganar: é aqui que se vestem os corpos e ultima-se a despedida. No armário ao lado dos cabides veem-se alguns produtos como uma base, um pó de acabamento para corar um pouco o rosto; produtos para lavar o cabelo a seco; escova de cabelo; corretor de manchas ou cera. Se entrássemos num universo infantil onde tudo nos é possível imaginar, ou mesmo para quem acredita que há uma espécie de porta de passagem para o outro lado, este podia ser o salão de beleza antes da grande entrada noutra vida. “Aqui temos indicações específicas de como as pessoas querem que se apresente o seu ente querido”, diz Nuno enquanto nos vai mostrando algumas fichas nos sacos. Num deles podemos ler “ir descalça”.
O tanatopractor já não é responsável por vestir o corpo, há outros operacionais para o fazer, mas Nuno já teve de o fazer várias vezes. “Pode acontecer até porque tem de haver sempre duas pessoas a vestir o corpo porque é preciso muito cuidado com o manuseamento do mesmo e com todo o respeito que o falecido merece”, explica.
É com isto em mente que devem trabalhar todos os tanatopractores que, para o serem, precisam de ter determinado perfil, na opinião de Nuno não basta fazer o curso e conhecer a anatomia do corpo humano. “Para se ser tanatopractor tem de se ter gosto no que se está a fazer e ter respeito, porque sem sombra de dúvida o respeito é o essencial. Temos de tratar um corpo como se fosse em vida, como se fosse o nosso próprio familiar ali deitado”, diz.
Lidar diariamente com a morte aproximou-o mais da vida. “Acho que me tornei mais humano e ponderado. Talvez pense mais um bocadinho antes de estar a fazer uma coisa que se calhar me vou arrepender”, confessa quem conhece bem o lugar onde tudo termina.