Nas últimas semanas, assistimos a uma discussão em torno da inteligência artificial, por causa da aplicação ChatGPT, naquilo em que pode ou não substituir o ser humano, contudo há algo que não pode ser substituído: o amor.

Tirando o filme de 2013, “Her”, em que a personagem de Joaquim Phoenix se apaixona e relaciona com um chatbot com emoções, na vida real isso ainda não é possível. As máquinas podem conseguir imitar o cérebro humano em muitas funções, mas na sua capacidade de amar, ainda não.

O SAPO falou com o professor e neuropsicólogo Manuel Domingos sobre o “amor” e percebemos que amar alguém não é apenas fruto da nossa atividade cerebral ou batimento cardíaco. E por isso não há algoritmo que o imite. “Não acredito que o amor possa ser substituído [pela IA]. Mas deixo a reflexão sobre se o amor, tal como o conhecemos e aceitamos, continuará a ser uma realidade; ou se as pessoas procurarão apenas relacionamentos de ocasião e úteis”, começa por refletir o neuropsicólogo.

Manuel Domingos
Manuel Domingos Manuel Domingos, neuropsicólogo

Começámos a nossa conversa também por perceber que para a neurociência – talvez como no amor – não há certezas nem impossíveis. “O impossível não existe e a certeza nem pensar”, diz. Manuel Domingos é professor de neuropsicologia e coordenador da Unidade de Neuropsicologia no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (Hospital Júlio de Matos), estuda e trabalha o cérebro há mais de 30 anos, mas não é a ele que atribui a capacidade de amar. Com uma visão muito holística sobre o sentimento, Manuel Domingos abriu-nos o seu consultório para nos falar de amor.


Vamos então falar de amor. Como é que a neurociência define o amor?

É uma pergunta muito complexa. O amor para a neurociência provavelmente é tudo aquilo menos o que a neurociência pensa. O amor é externo à neurociência. Não é a atividade cerebral que provoca o amor, é o amor que provoca a atividade cerebral, tais como os sentimentos, pensamentos e emoções. Sentir qualquer coisa perante um determinado tipo de estímulo vai causar uma série de micro e macro atividades encefálicas. Mas, na minha opinião, dizer que nós só sentimos amor, ódio, desprezo, seja o que for, por causa da atividade cerebral, é falso. As coisas só acontecem no nosso cérebro porque recebemos estímulos que vêm de fora.

Então o que nos acontece, não acontece só no cérebro?

Não. No outro dia li o António Damásio a dizer “se estão à espera de encontrar a inteligência no cérebro, esqueçam”. E até que enfim deixamos de ser materialistas e achar que “isto é assim porque o cérebro manda assim”. Não podemos reduzir tudo à atividade cerebral.  Esta ideia que tudo o que nós pensamos, sentimos, falamos está no cérebro, é falso. A mente não está no cérebro. O cérebro é um interface entre a mente e nós. A mente está, como às vezes costumo dizer, here there and everywhere. O que torna isto mais interessante.

Mas o que é que acontece no nosso cérebro quando nos apaixonamos?

Materializando as coisas, quando nos apaixonamos, ou seja, quando de fora vem um estímulo que tem significado, há áreas do nosso cérebro, mais propriamente do nosso encéfalo, que se ativam durante este processo. Por exemplo, as áreas mais anteriores, chamadas áreas pré-frontais, são de extrema importância,  pois é a zona onde se faz a seleção de estímulos, que nos permite pensar no que é certo e errado, que nos ajuda na valorização de um estímulo e que tem ligações extremamente ricas com uma estrutura do nosso cérebro que é o sistema límbico, responsável pela regulação de emoções. Este sistema recebe o estímulo e faz o tratamento da informação com ajuda de outras áreas do cérebro atribuindo maior ou menor importância, maior ou menor intensidade. Há depois uma torrente de substâncias neuroquímicas que participam como a dopamina, que é um neurotransmissor da satisfação, prazer e bem-estar, e a serotonina, que é um neurotransmissor associado a estados emocionais e envolvido na intensidade do nosso humor.

E como diferenciamos sentimentos e emoções?

Eu primeiro emociono-me e depois sinto. O sentimento perdura, a emoção pode desaparecer. Se aparecer aqui algo ou alguém que eu não estava à espera eu surpreendo-me, ou alguém que não conheço e por quem fico interessado, portanto essa é a emoção, depois posso ou não sentir algo em relação a isso. A emoção é o gatilho, a mola, que faz disparar o sentimento. O amor não é uma emoção, é um sentimento. A emoção até posso liga-la à paixão. O amor é uma coisa muito mais substantiva, que perdura.

É por isso que acreditamos que primeiro vem a paixão, que pode ir, mas o amor fica. É assim?

Pode ser. Também pode haver paixão que não resulta em amor. Não é obrigatório que a paixão seja um precedente do amor. Às vezes nem há paixão, mas as pessoas com o convívio, com a habituação, com a partilha de experiências, com o conhecimento das virtudes – e até de defeitos – do outro vão-se aproximando gradualmente até que se instala um sentimento de amor.

E se calhar é mais duradouro…

Eu arriscaria a dizer que muitas vezes este tipo de amor não precedido daquela paixão fica mais sedimentado do que o amor despoletado pela paixão física. A paixão física desaparece, as pessoas degradam-se. O amor é muito mais do que o físico, o amor é estar identificado com o eu interior do outro, mais do que estar identificado com o eu exterior do outro. Olhe o exemplo daquele ator o Pierce Brosnan, casado há vinte e muitos anos, a mulher que era elegantíssima e neste momento está gordíssima e, no entanto, ele continua a amá-la de uma forma incondicional. Ou seja? Tudo aquilo que eventualmente poderá ter despoletado a paixão carnal desapareceu, mas as qualidades interiores ainda convivem e perduram.

E o que mantem esse amor?

As memórias beneficiam desta interface do cérebro. As lembranças que nós vamos tendo da vida com o outro reforçam, ou não, o prolongamento do sentimento que temos. E não é constante. Podemos adorar uma pessoa, mas de repente há um episódio da vida a dois de tal maneira traumático, surpreso, negativo que nos faz desamar aquela pessoa que nós tanto amávamos.

Isso tem que ver com a quebra da memória que se tinha da pessoa…

Sim. E tem que ver com expetativa e com aquilo que estávamos convencidos, tínhamos um capital de cultura sobre o outro – uma questão de cultura interior – que de repente é abalado. E isto remete para a inconstância dos sentimentos, pode ser devido a uma traição ou simplesmente ao facto de as pessoas mudarem (porque nós mudamos ao longo da vida), e isto leva a uma desconstrução dentro de nós.

Os sentimentos são inconstantes…

Hoje, cada vez mais, as relações que temos são inconstantes. Temos de ter espírito aberto, para o melhor claro, mas perceber que pode não ser para sempre.

E todos os seres humanos são capazes de amar?

Não. Há pessoas que não são capazes de amar. Aqueles que nunca foram amados, e portanto não acreditam, não conseguem construir esse sentimento, muito vindo da infância do amor de pais para filhos…

Porque o amor também se ensina?

O amor ensina-se. Os valores ensinam-se. Mas atenção; há pessoas que nunca foram amadas e conseguem amar fervorosamente. Mas continuando: depois há os patológicos, os psicopatas. Não se amam e não conseguem amar os outros. É uma área que tenho estudado bastante e acredita-se que a função desta área pré-frontal nos psicopatas está distorcida, não dando possibilidade a que o psicopata tenha crítica sobre os seus atos, primeiramente, não teça juízos de valor corretos, não haja empatia, haja uma desinibição para o crime, que não tem de ser crime homicida, há psicopatas que destroem vidas sem nunca matar ninguém. Estas pessoas não são capazes de amar numa visão biopsicossocial.  E eu digo biopsicossocial, porque só o biológico não chega para amar.

Não podemos reduzir o amor ao cérebro, já percebi. E então porque há uma associação do amor ao coração?

Durante muitos anos, na civilização grega e Idade Média, havia uma teoria cardiocentrista, ou seja, tudo acontecia no coração. E não é por acaso que quando nos acontece algo ligado aos sentimentos, por exemplo numa tragédia, levamos as mãos ao coração…

E há aquela ligação do amor ao batimento cardíaco mais forte…

O coração bate mais depressa porque tem neurónios adrenérgicos, que libertam adrenalina e faz com que o coração dispare e que tenhamos taquicardias; a respiração fica ofegante e transpiramos mais. Isto são coisas do nosso sistema nervoso autónomo. Esta foi uma teoria precedente ao cerebrocentrismo. Eu acho que o centro de tudo somos nós, não é o cérebro nem o coração, nem nada. Nós vivemos como um todo, numa versão holística. Mas dependemos do todo dos outros, e não falo só de humanos, mas também de outros seres vivos ou da Natureza. Isto é o que acredito mais. O amor depende muito desse todo.

coração e cérebro
coração e cérebro créditos: iStock

E o sexo. Acha que o sexo pode despertar o amor?

Pode, mas não considero que o sexo seja o fator principal de desencadeamento de uma relação amorosa. O sexo é a primeira coisa a morrer quando se deixa de amar. Esta coisa de curarmos situações de desamor com relações sexuais é um verdadeiro disparate. O amor não se cura assim, os sentimentos não se curam com sexo. O sexo é que é curável com sentimentos. Os problemas sexuais é que podem ser curados com amor.

A nível neurológico conseguimos separar os conceitos que inventámos de “fazer sexo” e “fazer amor”?

De facto são dois conceitos interessantes. A nível neurológico não há diferença nenhuma, a diferença está ao nível psíquico. A nível neurológico a função está feita, está cumprida. A nível psíquico, havendo amor, há vínculo; não havendo amor, não há vínculo nenhum. O chamado “fazer amor” implica muito mais investimento. A relação sexual com amor não acaba na relação sexual, continua. Fazer amor é estar, é ficar, é continuar a dar afeto, ao passo que fazer sexo termina no ato.

E morre-se por amor? Ou falta dele…

Acho que cada vez menos. Aquela coisa dos franceses de mourir d’aimer é cada vez mais raro. Antigamente, no século XIX/ XX, ouvíamos falar de pessoas que morriam de amor mas era porque deixavam de comer, deixavam de querer viver, as pessoas deixavam de se cuidar e enfraqueciam. O organismo desinvestido provoca anomalias ao nível do pensamento e, sabendo nós que o sistema nervoso está ligado de forma muito estreito ao sistema imunitário, é fácil perceber. O sistema imunitário ia sendo destruído e iam aparecendo patologias endógenas. Hoje em dia, acho que os males de amor são menos perigosos e destrutivos, também porque as pessoas têm outras coisas à sua disposição. Já não vivemos no tempo do Romeu e Julieta. Hoje ama-se à pressa.

Tudo hoje é à pressa…

Exato. Porque a vida hoje é toda à pressa. Esse é o grande problema, já não nos sentamos a refletir sobre estas questões. Ou quando nos sentamos, é a olhar para o relógio e não nos permitimos estar muito tempo só a pensar.

Então o que é preciso para amar?

Disponibilidade, primeiro de tudo. A disponibilidade para amar hoje é um problema, porque estamos sempre tão cheios de coisas para fazer que muitas vezes, inconscientemente, achamos “ eu não tenho tempo para isso”. Oiço muitas pessoas a dizer-me isso. Segundo, é encontrarmos alguém que comungue, não das mesmas ideias, mas dos mesmos valores. Isso é fundamental. E terceiro: sermos ainda capazes de refletir do que é amar o outro. Ter a ideia que amar é uma fusão, não basta só estar, é necessário fundir-nos um no outro, de forma mais espiritual. E dessa fusão pode na realidade surgir um amor incondicional, um amor produtivo, um amor físico também, que nos leve até ao fim.

E existe? Para descansar, ou desiludir, os mais românticos: o amor romântico pode durar uma vida toda?

Pode. Há amores que podem ser eternos. Aquele amor que não está ancorado em interesses materiais, mas sim na fusão um no outro, esse pode perdurar até ao fim.

No amor a violência não é uma opção. Seja esta psicológica, emocional, física, social ou sexual. Denunciar é uma responsabilidade de todos, alerta a GNR.#NãoTeCales