"Aqui não há sangue puro", declarou Lídia Jorge. Ao fim de 900 anos, os portugueses são "uma mistura onde não há quem possa dizer que é mais puro ou mais português do que outro", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa. Primeiro a escritora, conselheira de Estado e algarvia, num discurso de meia hora; depois o Presidente da República, no curto discurso de 10 minutos, fizeram da cerimónia do Dia de Portugal um elogio da miscigenação, com apelos ao "cuidado" e ao humanismo num "tempo de transição" em que o "poder demente" está a tornar os cidadãos em "meros espectadores".

A cerimónia deste 10 de Junho decorreu em Lagos, terra em que se misturam memórias e sinais históricos dos Descobrimentos, mas também do tráfico de escravos, como ambas as intervenções lembraram. "Lagos, onde se somavam os estaleiros das naus do futuro e o mercado dos escravos. Lagos, onde hoje se encontram tantos dos nossos emigrantes regressados à pátria, conjuntamente com residentes europeus das Américas, das Áfricas e das Ásias. Lagos, onde o passado do reino dos Algarves se junta a desafios acrescidos de presente e de futuro", afirmou Marcelo, fazendo a ponte entre o passado e o futuro, num discurso em que quis "recordar, recriar e agradecer".

Ao recordar os vários povos que foram construindo Portugal, Marcelo acentuou que foram fazendo do povo "uma mistura, em que não há quem possa dizer que é mais puro e mais português do que qualquer outro". Mas, continuou, "recordar é também recriar". "Temos o dever de nos recriar, de nos ultrapassar, cuidar melhor da nossa gente, para que seja mais numerosa, mais educada, mais atraída a ficar nesta pátria feita de um retângulo e dois arquipélagos, se quiser ficar. Ou a partir para voltar e nunca perder a saudade da terra se quiser partir."

Marcelo enumerou as várias realidades que considera que precisam de ser mais cuidadas (os emigrantes, os oceanos, a pertença à Europa), salientando, como em muitos dos seus discursos ao longo dos quase dez anos de Presidente, os pobres e excluídos. "Cuidar dos que já ficaram para trás ou estão a ficar. E são sempre entre dois e três milhões. E são muitos há muito tempo. Regime após regime, situação após situação. Intoleravelmente são muitos, são demais", acentuou o Presidente para quem "este recriar Portugal é a nossa obrigação primeira neste novo ciclo da nossa história".

JOSÉ SENA GOULÃO

Por fim, o agradecimento aos militares, personalizados na figura de Ramalho Eanes, a quem entregou o grande colar da Ordem de Avis, nunca antes atribuído, "em homenagem ao seu percurso como militar e cidadão".


Os alertas de Lídia Jorge contra a o "poder demente" e "fúria revisionista"

Lídia Jorge, a personalidade escolhida para fazer o discurso inicial deste 10 de Junho, centrou a sua intervenção na vida e obra de Camões, para fazer uma reflexão sobre a atualidade e os tempos de mudança que se vivem. "A própria biografia do seu autor se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação sobre a Terra", afirmou a escritora. "Camões, tal como nós, viveu numa época de transição, assistiu ao fim de um ciclo" e deixou vários avisos e conselhos sobre como viver tempos de crise.

"'Os Lusíadas' expressa corajosas verdades dirigidas aos rosto dos poderes que elogia", prosseguiu Lídia Jorge, lembrando como Camões mencionava "o vil interesse" do dinheiro, a mesquinhez e a falta de seriedade intelectual que estavam a tomar lugar nessa mudança de época que estava a viver. Camões, Cervantes e Shakespeare expuseram "os meandros da dominação" e como é possível que "figuras enlouquecidas" tomem o poder.

"Nos dias que correm trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global", atualiza Lídia Jorge. "O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz com que cada manhã sintamos" que há uma vertigem de mudança em que "os cidadãos são apenas público que assiste ao espetáculo", afirmou a escritora.

JOSÉ SENA GOULÃO

Depois dos elogios e da reflexão sobre Camões, Lídia Jorge expôs as dores das escravatura, "um processo de dominação cruel tão antigo como a humanidade", que conheceu vários ciclos, mas do qual "é indesmentível" que os portugueses inauguraram um novo ciclo. "Aqui foi inaugurado o tráfico negreiro, replicado e generalizado por outros países europeus até ao fim dos século XIX. Lagos expõe a memória desse remorso", afirmou a escritora e conselheira de Estado.

"Aqui ninguém tem sangue puro. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou, filhos do pirata e do que foi roubado", continuou Lídia Jorge, desejando que a consciência dessa miscigenação "talvez mitigue a fúria revisionista" que hoje em dia parece só olhar para "o pecado dos Descobrimentos".

"Como manteremos a noção de ser humano respeitável, digno, livre?", perguntou Lídia Jorge, lembrando como os portugueses acabaram com uma longuíssima ditadura e conseguiram estabelecer novas relações com os países colonizados. "Leio Camões, aquele que nunca morreu, com a certeza de que partilho da sua ideia de que o ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa", concluiu Lídia Jorge.