
Peço desculpa ao leitor por lhe apresentar um texto longo, mas a emergência do tempo que o PS vive impôs-se neste ensaio crítico.
Nos anos de 1970 e 1980, quando era muito mais fácil haver punhos no ar e sons da Internacional, Mário Soares não cedeu na sua leitura sobre o que devia ser o PS. Para ele, a experiência da Primeira República estava sempre presente, atentava em tudo o que não se devia fazer que impedisse que a democracia e o PS fossem centrais na vida portuguesa.
A Primeira República foi o tempo dos excessos, da ideologia metida à machada pela cabeça dos portugueses, a ausência de competências de governação, de ordem, de moderação.
O PS foi, portanto, o partido em permanente processo de libertação dos excessos e do frentismo, navegando com uma política de denominador comum que podia ser aceite de norte a sul do país.
No norte, o PS era comunista, no sul era, como é ainda hoje para o PCP, de direita. E havia Lisboa, onde sempre foi mais à esquerda fruto de influentes intelectuais que nele estavam e dos lutadores antifascistas que marcavam a memória.
Manuel Serra, depois Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira e, por último, Lopes Cardoso, foram, em anos sucessivos, os rostos dos que reivindicavam a “verdadeira esquerda” dentro do PS. Saíram e só Cardoso regressaria. Soares sempre dizia que os que afirmavam que o PS não era suficientemente de esquerda queriam um Partido Berdadeiramente Xuxalista.
Contra o PCP e a UDP, Soares promoveu a constituição da UGT em associação com o PSD. O PS nunca foi só o partido da luta de classes, pelo contrário, e não era, na sua estrutura diretiva, um partido de operários. Foi sempre, como também devia ser hoje, um partido da classe média, um espaço em que os mais pobres não querem que continuem a dar-lhe subsídios para se manterem pobres, mas que lhe concedam condições para deixarem de o ser.
Ontem, como hoje, a pior coisa que se pode fazer a um pobre é tratá-lo mesmo por pobre. É a indignidade em duplicado, é a marginalização completa. Só não entende isso quem nunca soube pessoalmente o que é a pobreza.
A primeira grande contestação a Mário Soares veio com o seu segundo governo e que resultou de um acordo com o CDS. Se esse partido era em Lisboa, e pelos seus quadros, civilizado e da direita democrática, no restante território era mais reacionário do que é hoje o Chega, mais insano na forma como implicava na vida das comunidades e na relação de propriedade.
Conta António Campos que, quando estavam a acertar o acordo com o CDS, Soares o chamou e lhe disse: Chama lá os rapazes do “esquerdalho”. Ou entram agora ou não entram mais. Entraram. Soares sabia fazer essa ponderação sobre o tempo político e sobre o que o país pensava. Sempre soube.
Quando em 1980 se constituiu a FRS, muito pressionada pelo ex-secretariado (Zenha, Constâncio, Sampaio, Guterres, Sousa Gomes), o frentismo, agora com novas formulações, teve o seu primeiro embate com a realidade. No ano anterior, passados cinco anos da revolução, a Aliança Democrática tinha ganhado as eleições. Os quadros mais à esquerda do partido achavam que era preciso uma frente que reunisse o partido de Lopes Cardoso (UEDS) e um punhado de ex-quadros do PPD reunidos na ASDI e muito apoiados por Eanes. Foi uma desgraça total. A FRS acabou por ter os votos do PS.
Chegados a 1983, quando era preciso salvar, pela segunda vez, o país, o PS soube, de novo, estar à altura do que lhe pediam e aceitou o Bloco Central. Mais do que os princípios, era o interesse do país que importava. Este ensinamento, de que os princípios devem ser subordinados aos interesses do país, desde que se não coloque em causa a democracia pluralista, a justiça social e os direitos humanos, foi, e continua a ser, a matriz essencial no socialismo democrático português que nunca aceitou fazer submergir a liberdade numa igualdade imposta pelo Estado que sempre foi o mantra dos partidos leninistas e trotskistas.
Convém, porém, deixar aqui uma nota sobre as eleições de 1983. O partido vivia uma divisão em que um conjunto de quadros, que valiam um quarto do apoio do partido, tinha seguido pela via da influência de Eanes. Ora, essa influência tinha limitado a civilização do regime, a revisão da constituição, a normalização da economia, a construção de uma sociedade livre e avançada.
Quando foi preciso fazer as listas de deputados, quase todos os membros dessa minoria (Sampaio, Constâncio, Guterres) ficaram de fora das listas. Soares foi duro, teve coragem, adivinhou o futuro do país e do PS. Em suma, fez avançar a democracia. Mas não fez só isso. Ao saber que o país carecia de moderação, iniciou o processo de normalização da esquerda revolucionária que terminou, já com ele Presidente, com a amnistia das FP 25; e também abriu a porta a antigos dirigentes do marcelismo (Veiga Simão e Silva Pinto tinham sido ministros) que assumiram lugares no Parlamento e o primeiro viria a ser ministro de Soares e de Guterres. Este foi sempre o partido de Soares – a esquerda em liberdade, democrática, de valores, moderada, acolhedora e conhecedora do sentir português.
A eleição para a presidência de 1986 separa, mais uma vez, o PS da influência eanista e comunista que era assumida por Zenha e dos grupos dos saídos da extrema-esquerda que antipatizavam com Soares e que se reuniram, muitos deles, na candidatura de Pintassilgo.
Soares sabe que só se consegue chegar à posição mais alta do Estado através da moderação, do centro e dos links com espaços conservadores. Ganhou, consolidou mais uma vez a democracia e ajudou a fazer de Portugal um país de valores, de concórdia, de razoabilidade e de solidariedade. O Portugal europeu já não voltava para trás.
Quando o ex-secretariado regressa à luta política, para ocupar o lugar que o tempo sempre reserva, já pouco do frentismo do início da década existe nele. Eanes não era Presidente, o seu partido tinha desaparecido. Mas, mesmo assim, as eleições de 1987 e de 1991 mostraram que um partido com uma linguagem urbana e ideologicamente marcada mais à esquerda não tem agregação para além de um quarto da população.
Em 1989, o PS assume uma candidatura com o PCP e a UDP em Lisboa. Nessa altura o PCP tinha mais votos na capital que o PS e o “negócio” foi muito bem feito por Sampaio. Desde logo, porque o PCP percebeu que, para ajudar a ganhar o município, tinha de indicar vereadores de perfil moderado e Sampaio, que era socialista, mas era um aristocrata urbano, fez duas coisas: convidou João Soares para a lista e incluiu personalidades muito consensuais.
Mas nessa eleição não houve só a vitória de Lisboa. O Porto também passou a ter um presidente socialista, como aconteceu com um conjunto significativo de câmaras do interior. E o que levou a essas vitórias? O tal PS moderado, não panfletário, mobilizador e próximo. Tínhamos, assim, as duas partes do PS que, quando se entendem e colocam os interesses das populações acima de tudo, levam a vitórias nacionais. Para fazer uma política de esquerda é preciso ganhar primeiro as eleições. Só os revolucionários não entendem isto. E é por isso que nas próximas eleições autárquicas importa voltar a ganhar Lisboa e o Porto.
Quando em 1991 o PS tem um resultado péssimo nas legislativas e se questiona a possibilidade de poder vir a ser governo com Sampaio como líder, há um corte entre a parte esquerda (sampaísta) e o novo espaço moderado (guterrista). Este segundo ganha o partido, faz mundícia interna (João Soares vence a importante federação de Lisboa contra António Costa) e o PS volta a ampliar a influência autárquica. A moderação tinha passado a ser a matriz da nova direção. O PS estava “atento às contribuições e aos desafios de outras famílias políticas de orientação reformista, dirigindo-se a todos os cidadãos e dialogando criticamente com as restantes forças democráticas” (pg. 6 da Declaração de Princípios).
Havia, porém, que ganhar as eleições de 1995. Guterres faz as pazes com o sampaísmo; dá guarida a um vasto conjunto de antigos dirigentes comunistas onde pontificava Pina Moura; e recruta para as listas de deputados antigos dirigentes do CDS de onde sobressaía Maria do Rosário Carneiro. Isto era falar para todos os países que existem em Portugal. Escolheu depois para ministros os sampaístas João Cravinho, Vera Jardim e Ferro Rodrigues. Acolheu e abriu.
A nova maioria foi, portanto, mais do que o PS, à esquerda e à direita, onde pontificaram elementos muito significativos de uma visão social cristã que sempre foi a matriz do nosso povo.
Quando em 1995 se colocou a questão de saber quem seria o candidato presidencial apoiado pelo PS, Sampaio já não é líder, mas ainda é alcaide de Lisboa. Antecipa-se e avança.
Estávamos na fase em que não havia ninguém que não fosse socialista, o governo estava em alta. Mas quando chegaram os resultados, pode ver-se que Sampaio teve dificuldades. Cavaco, que tinha sido chefe do Governo durante dez anos, consegue 46% dos votos, menos de 220 mil votos numa relação direta entre candidatos. A esquerda estava toda junta, mas a direita, mesmo depois de anos e anos de um cavaquismo em cacos, continuava fortíssima.
Tudo isto demonstra que quando o PS tem a câmara de Lisboa a ala interna mais à esquerda tem poder e consegue afirmar-se interna e externamente. Mas quando não tem, as coisas complicam-se muito.
Chegamos a 2004 e Barroso vai para Bruxelas. O PS é dirigido pela ala mais à esquerda. Nas eleições europeias tem uma vitória relevante, mas o cabeça de lista não representa essa esquerda interna. A escolha é Sousa Franco, ex-líder do PSD/PPD, antigo presidente do Tribunal de Contas e artífice da entrada de Portugal na moeda única. Era a moderação em grande.
Colocado perante a possibilidade de convocar eleições legislativas antecipadas, Sampaio não aceita. Nomeia Santana Lopes e o seu amigo de longa data, que chefiava o PS, demite-se da liderança do PS.
Sócrates avança contra Alegre e João Soares. Este último tem um resultado residual, Alegre anda pelos 25% dos votos. Era a esquerda moderna, a social democracia não estatista, a liberdade de criar e de ser, era a abrimento a novas exigências sociais. Era a chamada da juventude que hoje já não pensa no PS, eram os empresários que sentiam a ambição do projeto político socialista. Nada de conservadorismo à esquerda, nada de ultramontanismo à direita. O primeiro governo de Sócrates, para o qual chamou apoiantes de Alegre, como Santos Silva ou Jorge Lacão, ou pessoas que não apoiaram ninguém na luta interna, como Vieira da Silva, foi o melhor de todos os que Portugal teve desde o 25 de Abril e nem mesmo os recentes acontecimentos judiciais que o implicam podem fazer olvidar tal realidade.
O partido está ao centro, mas a Juventude Socialista caminha, cada vez mais, para uma leitura unitária com a esquerda bloquista.
O processo já vinha do período em que as esquerdas jovens lutaram, a nível europeu, contra a invasão do Iraque. Desse tempo saiu a ideia de que a Terceira Via tinha sido uma cedência ao neoliberalismo que precisava de ser combatida. Era, e é, um argumento falso.
Porém, foi a crise de 2008/2009, com os seus encadeamentos na Europa, que criou um confronto entre as implicações revolucionárias e as visões moderadas dentro dos partidos socialistas. As juventudes socialistas passaram a achar piada à luta anticapitalista de tipo Syriza, a dar vivas ao combate revolucionário da França Insubmissa.
A JS sempre foi mais à esquerda do que o PS. Até 1984 foi influenciada pelo trotskismo e pelo movimento autogestionário. Depois disso, sempre se manteve dentro do espaço da social democracia avançada. E os seus quadros, quando chegados à vida do trabalho e da constituição da família, assumiam no partido uma nova forma de entender as coisas, a histeria juvenil desaparecia.
A invasão da Troika dá o combustível a uma certa radicalização, a admiração pelos pensadores neomarxistas europeus e latino-americanos faz juntar as gerações mais recentes de militantes socialistas com as dos bloquistas e cria visões partilhadas, cumplicidades e influências. O tal Partido Berdadeiramente Xuxialista estava a nascer. Aquilo que Soares tinha travado, que Guterres e Sócrates tinham rejeitado no exercício do poder, vinha aí.
A eleição de Costa para a edilidade lisboeta abriu uma nova realidade. Costa caminhou, ao longo do tempo, com a esquerda do partido, mesmo que as suas proclamações ideológicas tenham sido sempre pouco esclarecedoras. No município da capital ele construiu uma “união nacional” de apoios. Tanto cedeu poder à esquerda com a introdução no poder do BE a partir de Sá Fernandes e do PCP, elevando Rúben de Carvalho com quem tinha uma relação amistosa que vinha de seu pai, como foi atendendo aos diversos interesses da direita.
Foi tanto assim, que nas primárias internas de 2014 foi realizada uma sessão para cidadãos independentes de apoio a Costa e nela esteve presente o genro de Cavaco Silva. Vejam só…
Costa vinha de uma ampla frente de apoio municipal, mas essa frente não alastrava ao país por decorrência de uma visão concentracionária, exclusivista e por vezes desfocada que os portugueses anteciparam.
Na luta contra Seguro, os líderes JS a partir de 2000 estavam lá todos. Eles que se tinham feito eleger numa perspetiva monocolor, não maleável. A eles se juntaram velhos democratas que, depois de terem feito uma vida boa com a democracia, olhavam agora para o mundo da tecnologia, da velocidade e da comunicação sem que o entendessem. Esse mundo das redes socais e da IA assusta-os, faz deles novos revolucionários, cheios de medos, protetores de um passado que já não existe. Também havia amigos de Costa que o tinham acompanhado sempre e que nunca alinharam em frentismos, mas lhe reconheciam (e reconhecem) génio imenso.
Ao contrário do que fizeram Soares, Guterres e Sócrates, o costismo não fez as pazes com o segurismo, mesmo que alguns deste grupo tenham sido membros do Governo. Seguro foi ostracizado e uma parte dos quadros, que hoje teria sessenta anos, valiosos no território e em muitos setores profissionais, perde-se definitivamente. E isso foi muito danoso para o partido, desperdiçou-se história, experiência e saber.
A geringonça resulta da derrota eleitoral do PS. Há muitas razões para essa derrota que não importa referir aqui. Mas a nova realidade parlamentar e governativa afirmava o contrário do que Soares sempre havia protagonizado, não estávamos a cumprir completamente os princípios do PS, o diálogo não era com os partidos reformistas.
Muitos dizem que Soares apoiou a solução. Soares também lutou contra a Troika e contra a invasão do Iraque, como Freitas do Amaral que tinha sido seu opositor em 1985. Não há nenhuma incoerência. Ele sabia que naquele momento era importante o pragmatismo. Mas isso é muito diferente de aceitar a deriva posterior que se verificou na visão de sociedade.
Por muito que digam, a governação entre 2015 e 2019 não satisfez a esquerda à esquerda do PS, Costa toureou o BE e o PCP, nunca cedeu no central da leitura de sociedade, nas opções económicas e orçamentais. E foi esse partido, mais ao centro e já construído a partir do poder, que levou à vitória de 2019.
Em 2020 começou a verificar-se uma separação de caminhos entre o costismo e a ala mais excitada. Em 2021, Costa não cede no orçamento do Estado, vai a eleições e tem maioria absoluta. Os jovens revolucionários iniciam o processo de chegada ao poder interno, têm uma malha no país que vem da JS, chegou a sua hora.
A ação governativa entre 2022 e 2024 foi um infortúnio. Costa tem a cabeça na Europa, pastas importantes não têm agregação à realidade, ministros há que não têm autoridade, o PS já não fala para toda a sociedade. A extrema-direita renasce e cresce aceleradamente. O PS perde o poder em 2024 e confirma-se, finalmente, o Partido Berdadeiramente Xuxialista.
Pedro Nuno Santos é líder. Muitos moderados, que tinham e têm por ele estima, apoiam a sua candidatura, tentam fazer-lhe ver que o país é diferente de algumas das suas ideias políticas, mas não têm sucesso. Pedro Nuno vai dando indicações confusas. Percebe que o caminho pode não ser o que está a ser seguido (como foi o caso da imigração), mas não consegue arranjar forças para dele sair. Há uma nítida visão, nas políticas e nas campanhas, do PT de Lula da Silva.
Tudo isto não seria suficiente. O partido afirma-se na infração reincidente da sua Declaração de Princípios. O princípio central, que sempre foi a liberdade (pg.5), cedeu ao politicamente correto. Isso era visível no desdém que recebia quem questionava, sob ponto de vista ético, a eutanásia; o ostracismo a que era votado quem se opunha às casas de banho únicas nas escolas. A política do cancelamento, que ainda continua, passou a ser o mantra de relevantes dirigentes na ação partidária.
Mas também é violentado o princípio da equidade ou igualdade de oportunidades (pg. 8). O PS passou a observar a igualdade imposta pelo Estado como novo além, coisa que os socialistas portugueses nunca tinham aceitado ao longo da sua história. Os manuais escolares gratuitos, cedência geringonciana, são, por exemplo, a tal visão de igualdade metida a ferros na cabeça dos portugueses.
E passou a assumir uma visão estatista da economia abjurando “o mercado como instrumento principal de coordenação e organização dos fatores produtivos” e a consideração de que o seu “papel deve ser valorizado, designadamente nas funções que pode cumprir melhor do que os modos alternativos de afetação de recursos” (pg. 9). Os programas eleitorais de 2024 e 2025, não observavam as obrigações que acima se indicaram, o que fez com que muita gente tivesse intuído o caminho que se ia seguir. Sem deixar de ter um papel ativo na regulação, na saudável concorrência, nas antigas e novas funções soberania (educação, saúde e pensões) e nos setores de interesse económico geral, o PS sempre advogou uma economia de mercado e não uma sociedade de mercado. Mas isso é muito diferente da “visão estratégica do Estado” sobre o mercado.
Também foi quebrado o princípio de que “a criação e a distribuição de riqueza não são opostos, mas sim aliados” (pg. 10) A excessiva tributação de empresas e pessoas sem um Estado competente, a despesa incontida e nunca sujeita a cativações, foi a base da luta dos jovens membros do Governo contra Centeno e que se transformou, depois, numa opção partidária entre 2024 e 2025.
E seguindo nas transgressões, o Programa de Governo de 2025 infringia nitidamente o princípio de que os “socialistas são, portanto, radicalmente contrários às lógicas assistencialistas que, de facto, perpetuam a pobreza e a exclusão (pg. 12). Ora, o RSI sem políticas de dignidade para a formação ou o trabalho, e a ideia estapafúrdia do IVA 0% para bens de primeira necessidade, são tudo o que não se devia fazer ou sugerir.
E sobre o que deve ser o PS hoje, muitos olham o mundo de cima para baixo sem reparar que o PS “quer dirigir-se às pessoas e aos grupos em situação de risco de exclusão, assim como àqueles que se encontram ameaçados pela marginalização ou o desfavor, mas a todos tratando como cidadãos, titulares de responsabilidades e direitos, e não como assistidos ou dependentes” (pg. 13). Foi a violação deste princípio que fez crescer o populismo. Direitos sem responsabilidades não é a matriz do PS.
A visão excludente do ambiente, que passou a ser assumida no setor agrícola, também viola os princípios. Ela fez tábua rasa do seguinte: “O PS faz suas as preocupações essenciais do pensamento e da prática ecologista, não na variante fundamentalista que se recusa a pôr em equação o desenvolvimento e a conservação da natureza, mas sim colocando no horizonte soluções positivas para essa equação” (pg.14). A forma como se passou a encarar o mundo rural, a negação da sua realidade própria como são exemplos a caça e a “festa”, afastou milhares de portugueses. Ao mesmo tempo, as expressões populares como o folclore ou os jogos populares passaram a ser coisas de provincianos, desprezíveis.
E nova infração se verificou quando se faz eliminar a obrigação de o PS se dirigir “aos empresários, de qualquer setor ou dimensão, que investem e geram emprego e valor” (pg. 16). A vergonha de falar com os bancos ou as grandes empresas que passaram a ser “inimigos” e a forma como se passou a tributar o rendimento das pessoas coletivas, afastaram o PS dos empresários, cortaram uma relação de décadas.
E, por último, muito grave e penalizante, a visão redutora do funcionamento interno do partido. “O PS considera vital não ceder à tentação inerente às organizações políticas para se fecharem sobre si próprias” ou “O PS cultiva a democracia interna e vê a sua força principal na pluralidade das caraterísticas, convicções e projetos dos seus membros” (pg. 22) são princípios que se eclipsaram há muito. O amiguismo e o aparelhismo venceram!
Nos últimos anos, o tacticismo ganhou, o ceticismo atacou, a falta alegria e esperança imperou, a ação governativa foi despida de sentimento, tudo passou a ser um fardo. Muitos achavam que os eleitores tinham a obrigação de votar sempre nos socialistas, coisa de políticos que perderam (ou nunca tiveram) a ligação à realidade. A falta de pensamento crítico atingiu o seu ponto mais alto.
Muitos, dentro e fora do PS falam da ausência de empatia (capacidade de alcançar e partilhar os sentimentos e perspetivas do outro, assumindo o lugar e as necessidades do outro) mas querem obrigar os portugueses a aceitarem o que eles impõem. Esse é o mal de quem fala e escreve na comunicação social, mas que não tem qualquer ligação com a realidade das pessoas e dos territórios. Em certos meios há muita mais gente a conhecer mais capitais europeias do que capitais de distrito.
Há uns dias vi uma dirigente afirmar, para consagrar uma certa visão do PS, que se inscreveu pela mão de Soares. Eu também, como milhares. Só que há uma enorme diferença, o PS não é o que nós individualmente queremos que seja. Não é o PS que tem que entrar na nossa matriz, somos nós que temos de entrar na matriz do PS, sob pena de acabarmos por não ter PS algum.
O PS não pode ser um partido onde primeiro se atira, se quer matar e depois se pergunta pelas razões. Não são os outros que têm de vir prestar-nos contas, não há direitos especiais, todos estamos em pé de igualdade. E a solidariedade, condição essencial na vida do partido, não pode ser uma exigência unívoca, altiva, grupal. O “pluralismo das ideias e das opiniões foi sempre a marca caraterística, não só do seu funcionamento e da sua ação”, sempre se denunciaram totalitarismos e nessa denúncia deve incluir-se o wokismo que hoje atravessa uma parte das esquerdas ocidentais.
Obama disse há uns dias: “Acho que vai requerer um pouco menos olhar para o próprio umbigo, menos queixumes e posições fetais. E vai exigir que os democratas se deixem de tretas.” Nada mais se pode pedir aos militantes e dirigentes do PS.