![Joan Didion e a arte de perder](https://homepagept.web.sapo.io/assets/img/blank.png)
Há uma escritora cuja biografia e obra são absolutamente admiráveis pela procura da lucidez, elegância e resiliência — a Joan Didion. A figura frágil e franzina de Joan, movida essencialmente a cigarros e Coca-Cola, não a impediu de ser considerada uma das grandes cronistas do nosso tempo, autora de romances e obras de não-ficção, bem como uma jornalista que influenciou até hoje o estilo que se pratica nos jornais de referência. Resumindo, uma mulher excepcional com uma voz crítica e acutilante que nunca esmoreceu, nem mesmo devido às circunstâncias trágicas que lhe levaram, num curto intervalo de tempo, dois anos apenas, a família nuclear — o marido, John Dunne (célebre escritor e argumentista), e a filha de ambos, Quintana (com apenas 39 anos). Uma das mais extraordinárias obras de não-ficção da autora, O Ano do Pensamento Mágico, conta parte desta tragédia, a morte de John com a filha de ambos internada no hospital com uma pneumonia, tentando por vezes contornar a autocomiseração, outras assumindo-a, afirmando-se com a lucidez possível das primeiras às últimas frases da obra: «A vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Sentas-te para jantar e a vida, como a conheces, termina. (...) A loucura vai recuando, mas a clareza não ocupa o seu lugar.» A narrativa restante da tragédia pessoal encontra-se em Noites Azuis, uma obra sobre a morte da filha.
A autora, falecida em Nova Iorque em 2021 devido a complicações da doença de Parkinson, terá muito em breve, no segundo trimestre do ano, outra obra publicada em Portugal pela editora Infinito Particular — o diário póstumo de Didion, Notas para John —, que será publicado primeiramente em língua inglesa, nos Estados Unidos, no dia 22 de Abril deste ano, pela editora Knopf.[1] O diário de Didion foi descoberto nos arquivos do seu apartamento em Manhattan e tem início no ano de 1999, quando a autora começou a ter consultas com um psiquiatra, muito antes da tragédia familiar. A autora escreveu o diário de uma fase pessoal e familiar difíceis, considerando as notas que foi tomando em modo de registo para o seu marido John. Segundo a editora americana, «as sessões iniciais centraram-se no alcoolismo, no processo de adopção da sua filha, na depressão, na ansiedade, na culpa e nas complicações dilacerantes da sua relação com a filha, Quintana. (...) No entanto, esta é também uma Joan Didion como nunca a vimos antes — franca, vulnerável, a debater-se com emoções profundas.» Estratégia de marketing ou não, estou certa de que teremos uma voz diarística que se distingue das obras antes da tragédia familiar.
Há uns tempos, ao conversar com uma artista que me é próxima sobre a fatalidade que tinha ocorrido na sua vida, a perda de um filho adulto, atrevi-me a gabar-lhe a coragem, sem saber que era algo que podia ser ofensivo. Zangou-se comigo, explicando-me depois que coragem não tinha nenhuma, simplesmente não havia alternativa. Sobreviver aos solavancos. Continuar a acordar e a empurrar os dias como um carrinho-de-mão carregado com as mais inenarráveis memórias. A sua força moral ante a maior das fatalidades, a perda de um filho, deixou-me sem palavras. A sua bravura forçada tornaram-na, aos meus olhos, ainda mais nobre e admirável. Intimamente humana. Relacionei automaticamente com a história de Didion. Duas mulheres artistas que continuaram a trabalhar depois da tragédia, apesar da tragédia. Duas sobreviventes.
A fatalidade e a sobrevivência encontram-se presentes em O Ano do Pensamento Mágico. O que fazemos depois de uma tragédia, como sobrevivemos? «Sentas-te para jantar e a vida, como a conheces, termina. A questão da autocomiseração.» Didion contrariava D.H. Lawrence, que escreveu «nunca vi um animal com pena de si mesmo», lembrando os golfinhos que se recusam a comer depois da perda do parceiro ou os gansos que procuram os companheiros desaparecidos até ficarem desorientados e morrerem. Didion sentia ter direito à autocomiseração, como qualquer sobrevivente. Não forçava uma bravura artificial, aceitando sem remédio o destino que lhe coube, o sofrimento atroz que lhe mudou a vida e os gestos, mas que também lhe trouxe o sucesso literário e a projecção mundial. Joan Didion, como muitos dizem, deu um rosto ao luto.[2] Algo que certamente será insignificante ou trará agonia a qualquer autor. De que serve o reconhecimento profissional perante a perda devastadora? Para concluirmos a impotência do ser humano perante os acontecimentos, sejam bons ou maus? Didion mostrou-nos através do seu trabalho a arte de saber perder. Não que tenha feito por isso, simplesmente pela forma como viveu. A Arte de Perder é um poema magnífico de Elizabeth Bishop — «A arte de perder/ A arte de perder não é nenhum mistério; Tantas coisas contêm em si o acidente/ De perdê-las, que perder não é nada sério./ Perca um pouquinho a cada dia.(...)»
A vida pessoal e profissional de Joan Didion está sintetizada no documentário «Joan Didion: The Center Will Not Hold», realizado pelo seu sobrinho, o actor e cineasta Griffin Dunne. Aguardo com expectativa a publicação do diário, estou certa de que se trata de mais uma obra de profunda franqueza e humanidade.
[1] https://www.theguardian.com/books/2025/feb/05/joan-didion-diary-notes-to-john