
Ontem, foi com euforia bíblica que Robert De Niro foi saudado em Cannes, no rendez-vous com o público, animado por JR, conhecido artista francês.
Depois da noite “especial” da entrega da Palma de Ouro, hoje foi o público que o acolheu como um herói. Nesta ocasição, De Niro admitiu que o eco na sala lhe prejudicou a audição e aceitou revelar o seu projeto documental com JR, um olhar sobre a relação do ator com o atelier que preserva do pai, o artista Robert De Niro, Sr.
Foram, também, mostradas as primeiras imagens de um filme que ainda não se sabe se se destina às redes sociais ou às salas de cinema, ou se sequer será mostrado. “Precisamos de tempo”, avançou o norte-americano, que também contou que foi nesse encontro com JR que abriu pela primeira vez correspondência e diários do pai. Ficou provada a relação especial entre os dois, com o francês a brincar com as respostas curtas de “Bob”: “sim”, “talvez”, “é isso”. Tal como no dia anterior Leo DiCaprio avisou, é um homem de poucas palavras.
Surpreendentemente, foram mostrados cerca de dez minutos de um projeto que já tem vários anos e que o próprio De Niro nem sabe se terá oportunidade de ver em vida. São imagens que lembram muito o que JR fez com Agnés Varda. São as praias de De Niro com muitas imagens de vídeos familiares e com visitas de Sean Penn, Leonardo DiCaprio e Martin Scorsese. Um compêndio das memórias pessoais e profissionais, sempre com ideias perfomáticas de JR: uma sequência do ator a ter pesadelos ou a carregar uma foto gigante do pai numa montanha.
“É irritante. Às vezes não o quero fazer, mas tenho de o fazer. O que vi agora tem coisas que gostei”, confessou De Niro, que nunca foi expansivo nas respostas, mas fez rir: “O JR, mesmo quando eu morrer, vai continuar a filmar-me. Eu no caixão e ele a fazer-me perguntas”. O artista francês apenas respondeu que quer continuar durante décadas, mesmo não sabendo por onde seguir.
Sobre alguém que é tão privado na sua vida e nas suas palavras, este documentário desconfortável sobre as gavetas do passado é uma espécie de antídoto. “É um pouco como terapia”, avisou De Niro.
"A idade traz vantagens: observa-se melhor, olhamos para as pessoas de outra maneira”, confidenciou, em resposta a outra pergunta, acabando a falar da morte: “Tenho medo, mas não tenho remédio”. Despediu-se a dar autógrafos aos que estavam na plateia.
Laurent Cantet - Adeus aos meus amores
A Quinzaine deu Cinéastes está, este ano, com uma força invulgar. Aqui não se luta por Palmas, mas o facto de um filme ter direito a ser selecionado traz um estatuto de respeito. Por estes dias é lícito dizer-se que a sua programação continua a rivalizar com a oficial, sobretudo no Un Certain Regard. Uma Quinzena que alia consagrados com novatos, filmes de risco com linguagens mais acessíveis. E é também por aqui que há um clima mais informal e irreverente na receção aos filmes, trocando-se o smoking pelos calções.
A abertura deu-se com “Enzo”, filme de Laurent Cantet realizado por Robin Campillo. Trata-se de um filme de amigo para amigo - Cantet morreu e não conseguiu terminar o projeto e Campillo, amigo e colaborador, avançou. Um filme que é também uma homenagem.
Uma história de valores iniciáticos sobre Enzo, jovem de 16 anos que deixou a escola e lança-se como aprendiz de construção civil, mesmo sendo de boas famílias. Um rapaz a descobrir-se entre o tédio burguês e a apaixonar-se por um homem mais velho, um trolha vindo da Ucrânia.
Campillo evoca o gesto de Cantet e salienta a ideia de “conto de verão”, daqueles verões que mudam a vida de um rapaz. Cinema puro, límpido. Bom arranque.
O RUMOR DO DIA
Cleo Diára - dose dupla
Chega hoje a Cannes uma comitiva de atores nacionais com filmes presentes no festival. Salta à vista a talentosa Cleo Diará, presente nas duas longas 100% portuguesas, “Entroncamento”, de Pedro Cabeleira, exibido na secção ACID, e “O Riso e a Faca”, de Pedro Pinho, do Un Certain Regard. Duas interpretações tão distintas como viscerais. No filme de Cabeleira é uma jovem mãe divida entre o apelo de uma vida delinquente e a vontade de uma rotina normal, trabalhando na recolha do lixo, enquanto no majestoso épico íntimo de Pinho constitui um dos vértices de um triângulo amoroso em Bissau, na Guiné.
Será aqui, em Cannes, que esta atriz terá uma justa consagração, já depois de ter sido notada em “Diamantino”, de Gabriel Abrantes, vencedor da Semana da Crítica em 2018 quando ainda assinava Cleo Tavares. Agora está mais mulher e sabe dar alma a personagens que não se esfumam na simbologia do elemento africano. Não é por acaso que se chama Diára, em “O Riso e a Faca”.
FRASE DO DIA
“Está provado que quem vê muitos filmes tem em média mais quatro anos de vida do que os outros!”Dea Lawrence - diretora de marketing e chefe de operações da revista “Variety”
DA CROISETTE COM … ALGO
Muito se protesta neste certame. Este ano têm sido os jornalistas os mais queixinhas. Um grupo de jornalistas freelanceres, incluindo portugueses, emitiu uma carta de protesto face às poucas oportunidades de entrevistas que as estrelas de Hollywood com filmes presentes na seleção têm dado. Joaquin Phoenix, Kristen Stewart ou Tom Cruise têm acesso muito limitado. Esse protesto visa sensibilizar a direção do festival para pressionar os estúdios e os publicistas, sendo que, por exemplo, a Universal convidou a imprensa para um inusitado cocktail junto à praia, enquanto a Paramount ofereceu um snack gratuito aos jornalistas que aceitassem ver o novo “Missão Impossível" no IMAX de Cannes La Boca… Esta ação de protesto não é inédita: nos últimos festivais de San Sebastián e Berlim, o numeroso grupo emitiu comunicados de pressão, chegando a deixar Johnny Depp sem jornalistas numa conferência que se atrasou em demasia.
Num encontro com a imprensa com o diretor do festival, Thierry Frémaux, uma jornalista queixou-se em Cannes da hora matinal em que são disponibilizados online os bilhetes para as sessões de imprensa. Segundo ela, 7h da manhã é uma crueldade para os críticos que têm filmes às 22h30 e às 00h para ver. Frémaux admitiu que esta questão é algo que o festival tem de rever.