O mítico regresso à natureza, em busca de uma idílica comunhão com o viver natural, pode ter conquistado mais visibilidade mediática nos últimos tempos, mas está longe de constituir uma preocupação exclusiva dos dias de hoje, fruto de crescentes preocupações com a já inegável crise ambiental, os problemas de ansiedade e depressão decorrentes da intensidade da vida urbana, ou até como posicionamento crítico face à excessiva dependência de um incontrolável progresso tecnológico e digital. Ao longo dos tempos, numerosos filósofos exploraram a ideia da harmonia com o natural. Nem é preciso recuar até os estoicos, para quem o bem viver estava diretamente associado a um comportamento de acordo com a natureza. Mais próximos de nós, podemos evocar Jean-Jacques Rosseau, Heidegger e sobretudo, entre outros, o filósofo e naturalista estado-unidense Henry David Thoreau e o seu o livro “Walden”, onde a partir de uma experiência pessoal, elabora sobre a melhor forma de viver em harmonia com a natureza.

O espaço Silveira Village, na Serra da Lousã
O espaço Silveira Village, na Serra da Lousã Expresso

Esse desejo intemporal está em vias de começar a concretizar-se em Silveira de Baixo, Silveira de Cima e Pé da Lomba, três aldeias abandonadas da serra da Lousã. O arquiteto japonês Kengo Kuma, já responsável em Portugal pela intervenção no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, pela requalificação e conversão em estrutura cultural do antigo Matadouro do Porto, bem como pelo projeto “Vilamoura Fairways”, está a desenvolver a intervenção na Silveira de Baixo, uma aldeia abandonada há seis décadas, basicamente uma ruína, encaixada num vale da serra. A convite da “Silveira Tech”, cujos responsáveis estão associados ao renascer de Cerdeira, uma aldeia de xisto na mesma zona, hoje com alojamentos turísticos e uma escola de artes e ofícios, Kengo Kuma, como disse ao Expresso, está a incrementar um projeto cuja base passará por “tentar criar ali um novo estilo de vida num ambiente tradicional”.

Assim, prossegue o arquiteto japonês, “a nossa intervenção assenta em recuperar as aldeias, usando os mesmos materiais, a mesma escala e não interferir na harmonia do ambiente. Os edifícios manterão o seu espeto tradicional, mas pretendemos acrescentar-lhes novas funções”.

Kengo defende a existência de um grande potencial “para um novo estilo de vida” nas áreas onde vai atuar. “Se conseguirmos conectar todas estas áreas com internet e novas tecnologias, conseguimos dar nova vida estes locais”, onde acrescenta, “é muito importante manter a beleza da paisagem e evitar construir grandes edifícios, que podem destruir a beleza destes lugares”.

“Queremos respeitar a cultura local, os materiais locais e as técnicas de construção locais”, Kengo Kuma

Há uma natural expectativa quanto ao uso de xisto, um material tão característico daqueles espaços, bem como quanto ao uso de técnicas e materiais locais. “Isso é muito importante para manter a harmonia com a paisagem. Queremos respeitar a cultura local, os materiais locais e as técnicas de construção locais”, assegura Kengo Kuma.

Passa por aí, de resto, o trabalho mais notório de um arquiteto cuja filosofia arquitetónica se tem caracterizado por um consistente conjunto de princípios desenvolvidos ao longo de uma carreira já longa e muito respeitada em várias partes do globo. Para perceber este processo, é inevitável recuar até a crise económica que varreu o Japão no início dos anos de 1990. As encomendas a arquitetos caíram de forma drástica e Kengo passa a dedicar-se a projetos de menor escala em zonas rurais, como Tohoku e Shikoku, áreas com alguma similitude com a serra da Lousã, uma vez que as suas condições de povoações no coração da montanha, com difíceis acessos, as tinham afastado do desenvolvimento exponencial de áreas metropolitanas como a de Tóquio.

Silveira Village
Silveira Village Expresso

Ao visitar a serra da Lousã com a sua equipa, na qual se inclui a arquiteta portuguesa Rita Topa, Kuma ficou “muito impressionado com a beleza da natureza e a qualidade do espaço numa paisagem fantástica!”. Kengo quer envolver-se diretamente com os artesãos locais e usar materiais naturais e locais. Naqueles anos de 1990 assimilou experiências muito longínquas e exteriores ao uso do cimento armado e aço. Com os artesãos especializados no trabalho da madeira, do papel e da terra, percebeu poder estar ali um caminho capaz de contribuir para a manutenção e modernização das técnicas de construção tradicionais. Desse ponto de vista, e como o próprio Kengo Kuma chegou a afirmar, aquelas experiências permitiram-lhe descobrir a sua própria arquitetura.

O arquiteto japonês está já numa fase muito desenvolvida desse processo de ligação aos materiais locais e tradicionais. Por isso mesmo, insiste em afirmar a vontade de tentar usar materiais como o xisto e a madeira, e trabalhar com gente local.

Há um problema, reconhecido por todos, dos promotores ao arquiteto: os incêndios. Há um histórico bem negro de grandes fogos florestais na serra da Lousã, uma área muito vulnerável àquele tipo de calamidades. Como se percebeu com as grandes deflagrações das décadas de 1980 e 1990, ou até com os trágicos acontecimentos de Pedrógão Grande, no verão de 2017, são diversos os fatores a contribuírem para esse desassossego. Passam desde logo pelo abandono rural, com acumulação de matéria combustível, agravam-se com uma vegetação densa e muito inflamável (eucaliptos e pinheiros), terrenos acidentados e verões cada vez mais quentes e secos.

O perigo dos incêndios ameaça a região
O perigo dos incêndios ameaça a região Expresso

Os fogos são um problema sério identificado por um arquiteto cuja marca de identificação passa muito pelo uso da madeira. Ao Expresso confirma estar “a tentar usar madeira em diversas situações, mas ao mesmo tempo, e essa é uma das grandes questões relacionadas com este projeto, temos necessidade de perceber como proteger os edifícios do fogo. Com o aquecimento global, os incêndios são um enorme problema. Usaremos madeira, mas ao mesmo tempo temos de pensar no uso de materiais que não sejam tão vulneráveis ao fogo. Esse é um grande desafio para nós”.

José Serra, autor da ideia em desenvolvimento na serra da Lousã, com grande experiência nas áreas tecnológicas e cofundador da “Silveira Tech”, um projeto cuja finalidade é regenerar 97 hectares de terreno no coração da Serra da Lousã (230 hectares a mais longo prazo), e recuperar as três aldeias históricas abandonadas desde o início dos anos 1970, assume serem os incêndios o maior risco. Estão em curso planos de regeneração “de modo a tornar a floresta mais resiliente ao fogo”. Para isso, diz, trabalham em processos de retenção da água numa serra da Lousã muito chuvosa. Vai ser criada uma represa de mil metros cúbicos. Na perspetiva de José Serra “isso permitirá criar mais verdura, o que será acompanhado de recuperação dos solos, fertilização dos terrenos, e utilização de árvores como o cipreste, que não arde com facilidade”.

Expresso

Uma questão sempre colocada é a de saber quem serão os potenciais utilizadores destas aldeias. Segundo José Serra, empreendedores, nómadas digitais, cientistas e investigadores poderão interessar-se por estadias longas junto do centro de inovação e criatividade. A Silveira de Baixo comportará um empreendimento turístico desenhado por Kengo Kuma. O aldeamento, diz o promotor, será equipado com 25 unidades de alojamento e um hotel rural de três estrelas com 24 quartos.

Silveira de Cima terá um empreendimento de turismo de aldeia com cinco casas de campo e um conjunto de infraestruturas direcionadas para quem tenha interesse em aprofundar a aprendizagem experimental de regeneração da natureza. Ali os hóspedes poderão aprender técnicas de agroflorestal e permacultura, cuidar dos viveiros de árvores, estufas e hortas, bem como envolverem-se em projetos de investigação e desenvolvimento. A aldeia de Pé da Lomba transformar-se-á num Centro de Desenvolvimento Pessoal com duas casas de campo.

Kengo Kuma defende que aquele “local situado na montanha, com os vales, no interior do país, pode transformar-se num novo espaço de trabalho para jovens criativos interessados em viver em comunhão com a natureza”

Questionado sobre a sua visão de futuro as aldeias, Kengo Kuma defende que aquele “local situado na montanha, com os vales, no interior do país, pode transformar-se num novo espaço de trabalho para jovens criativos interessados em viver em comunhão com a natureza”. É, acrescenta, uma tendência hoje “muito comum no mundo”. No século XX a tendência foi de concentração nas grandes cidades, com abandono do campo e das montanhas. Agora, com as potencialidades da internet – uma área muito trabalhada e desenvolvida neste projeto da Lousã - será possível a conexão com qualquer parte do mundo.

Kuma mostra-se convicto de que a generalização destas opções pode, não apenas “mudar o sistema de sociedade tal como o pensamos”, como “pode transformar-se numa forma alternativa de trabalho nos próximos tempos.”