Mesmo que não estejam fielmente contabilizadas, diz-se que os portugueses têm 1001 maneiras de cozinhar bacalhau, um produto que está enraizado tradição nacional, mais ainda nesta época de Natal e com lugar cativo nas mesas da Consoada. As postas e os lombos do “fiel amigo”, cozidas ou assadas, são protagonistas nas mais populares receitas, que enchem ementas de norte a sul do país. Com uso mais localizado, o receituário dá uso às caras de bacalhau, apreciadas por muitos e ostracizadas por tantos outros, e às línguas, sobre as quais ainda não existe consenso alargado. Os samos (ou sames), que são as bexigas-natatórias do peixe, localizadas debaixo da espinha dorsal do bacalhau, outra parte menos nobre e até recentemente negligenciada na cozinha, ganharam agora maior uso.
Para os portugueses, o bacalhau está esgotado nas partes identificadas anteriormente, mas cada exemplar de Gadus morhua tem muito mais para aproveitar. A lição foi aprendida na BR Karlsen, criada em 1932 pelos irmãos Hilbert e Aksel Karlsen. A empresa sediada na pequena ilha de Husøy, no extremo norte da Noruega, já dentro do Círculo Polar Ártico, e banhada pelas águas frias e límpidas do Mar da Noruega. Rita Karlsen, neta de um dos fundadores, é, desde 2010, a CEO deste negócio familiar, que inclui uma fábrica de transformação de bacalhau, onde o bem-estar da comunidade local é preponderante.
Porquê? Porque uma parte considerável dos habitantes de Husøy trabalha na BR Karlsen. Em paralelo, o contacto diário com a Natureza é determinante nas ações implementadas em prol do meio ambiente. O combate ao desperdício é, por esse motivo, ponto assente na filosofia desta empresa norueguesa. Neste contexto, Rita Karlsen garante que “tudo se aproveita no bacalhau”, referindo-se aos chamados subprodutos deste peixe, cuja rota migratória passa pelas águas norueguesas. A maioria tem destino traçado para outras latitudes, mas há também partes que ficam no país de origem, ainda que este não seja um alimento comum nas mesas locais.
Tudo se aproveita
As cabeças do bacalhau têm a Nigéria como destino gastronómico. É um dos ingredientes utilizados na confeção da sopa “Edikaikong”, a mais popular daquele país de África. Já a espinha dorsal viaja até à Ásia, tendo a China como destino principal. O Japão é o mercado de exportação de outro dos subprodutos do bacalhau. Trata-se do fluído seminal. Este é usado no shirako, o qual também é feito com o sémen de arenque. A textura é macia e é servido com arroz branco ou em sopas. As ovas de bacalhau são o caviar da Noruega e do fígado é extraído o óleo, que também fica neste país nórdico.
Selecionar, cortar, separar, salgar
Na BR Karlsen tudo é feito manualmente. “É uma das fábricas de transformação de peixe mais moderna da Europa”, assegura Rita Karlsen. A afirmação está associada à nova máquina equipada com tapetes rolantes dispostos em vários andares, que permite o manuseio por parque dos empregados. Tudo começa a funcionar assim que uma das embarcações de pesca atraca no porto contíguo ao exterior da fábrica.
O peixe é despejado numa espécie de tapete de escolha, no qual é feita a seleção dos peixes. Segue-se o corte da cabeça, com o auxílio de uma lâmina de corte vertical. Já o corte longitudinal é feito noutro tapete e com uma faca bem afiada, ao que se segue outro tapete, em que as vísceras são retiradas manualmente. Retirada a espinha dorsal, o bacalhau é coberto de sal e submetido à cura.
Portugueses em ação
Parte do trabalho na fábrica é efetuado por portugueses. Há duas dezenas a trabalhar na BR Karlsen. É o caso de José, Zeca para os amigos, que, desde 2020, trabalha na fábrica do bacalhau desta empresa da Noruega nesta época do ano. Em contrapartida, José de Sousa, que teve a experiência de fazer uma temporada no início de 2023 e outra em 2024, decidiu, com a mulher, Rosa Freitas, irem para Husøy de malas e bagagens, na companhia das filhas, Eva, de 12 anos, e Ísis, de 10 anos.
Da BR Karlsen para Portugal são exportadas 6.000 toneladas de bacalhau, muito do qual passa por mãos de duas dezenas de portugueses, que trabalham na fábrica da referida empresa norueguesa. O “fiel amigo” chega cá com a imperativa salga, ao que se segue a maturação ou tempo de cura. Depois, há que ter em conta a secagem, período de tempo determinado de acordo com o tamanho e o peso do peixe. Em casa, demolha-se e está pronto para ser confecionado.
O Boa Cama Boa Mesa viajou até à Noruega a convite do Norwegian Seafood Council / Conselho Norueguês das Pescas