O corpo inclinado nas costas da cadeira, uma perna cruzada sobre a outra, os cotovelos mansos nos apoios para os braços. Ronnie O’Sullivan emana tranquilidade, nem um nico de nervosismo parece perturbá-lo ao ouvir a pergunta do cicerone da “Eurosport”. Quando responde, fá-lo sem pressas, o discurso pausado, até não esconder um sinal: ao frenar a resposta, os seus olhos atraídos para a cana do nariz fecham-se, quase espremidos pelas pálpebras, antes de dar o contexto para o que fizera. “Vinha de três semanas em viagem. Acho que fiquei exausto. Foi muita pressão enquanto estive fora, toda a antecipação, foi tudo demais. Perdi o controlo”, lamentou o ali calmo inglês, a disfarçar a encruzilhada que lhe ia na cabeça.

Como de costume vestido de preto integral, o campeão mundial de snooker estava em Leicester, em janeiro, acabado de desistir do Champioship League onde lhe fugira a compostura de monge pedida aos jogadores, obrigados a serem quase estátuas de emoções. Durante o jogo contra Robert Milkins, o quarto dos cinco que perdeu, O’Sullivan não se conteve e partiu o taco ao bater com o sacral objeto na mesa após falhar uma bola que o normal funcionamento do cálculo de geometrias na sua cabeça chamaria um figo. Seria mais uma; pouco antes, noutro insucesso, fletira os joelhos, puxara o taco para entre as pernas, dobrara a beiça inferior do lábio enquanto simulava o gesto de dar uma tacada. Os sintomas eram evidentes.

O “ataque de ira” e de “pura frustração”, admitiu esta semana ao “El Mundo”, submergiu o sete vezes campeão mundial, génio intemporal do snooker, para as profundezas das suas próprias querelas mentais. A sua desistência do Masters acrescentou-se à lista de abstinências desta época: já se retirara dos Masters da Alemanha para cuidar da “saúde mental e bem-estar”, abdicara de competir no Open de Gales devido à ansiedade e provavelmente as mesmas razões o tinham feito retirar-se da prova escocesa, também em janeiro. Desde então, a testa mais franzida da modalidade, enrugada pelos tantos anos a dominá-la, não voltou a jogar e raramente sequer treinou.

Ronnie O'Sullivan não compete desde janeiro, quando desistiu de um torneio em Leicester após partir um taco.
Ronnie O'Sullivan não compete desde janeiro, quando desistiu de um torneio em Leicester após partir um taco. VCG

Mais do que uma pausa sabática, Ronnie O’Sullivan nada pôde contra os intangíveis que o forçaram ao interregno e o transformaram quase numa contradição ambulante.

Professa amar o snooker “com loucura”, mas, na mesma entrevista ao jornal espanhol, admite que chegou “a perder o amor pelo jogo”. Profissional desde 1992 e implacável a encaixar a bola vermelha, depois uma preta, intercalando com as de cor, uma a uma encadeadas numa perfeição robótica e veloz, não sendo por acaso, mas sim causal, a alcunha ‘The Rocket’, decidiu “há seis ou sete anos” tentar “aperfeiçoar alguns aspetos” do seu jogo já quase infalível, abundante em auto-confiança, tanta que repetidas foram as vezes em que menosprezou as novas gerações de jogadores, adjetivando-os de amadores e sem nível para o incomodarem na luta por títulos.

Então pôs-se à mercê de “vários treinadores”, recebeu conselhos, tentou limar minudências no seu jogo. Era O’Sullivan a sucumbir às mágoas da solidão sentidas lá no alto da grandeza: as suas aptidões sem par deixaram-no, durante décadas, tão confortável nos píncaros do snooker que às tantas ousou mexer-lhes. Correu “realmente mal” e fê-lo tombar cá para baixo. “Acho que a nova técnica que tentei impediu-me por completo de jogar da forma como sempre joguei e não sei como voltar a um nível remotamente próximo aquele em que quero jogar”, reconheceu, na sexta-feira e à “Sky Sports”, o quase cinquentão que a unanimidade tem como o melhor jogador da história.

Sem competir desde o taco partido em janeiro, inclusive atirou-o para o lixo - o seu manager haveria de o resgatar, ordenado pela organização do torneio - o inglês dos 41 títulos e 389 semanas como número um do ranking, maior força gravítica da modalidade, confirmou o seu regresso nos Mundiais de snooker que arrancaram este sábado. Na antecâmara da confirmação do seu retorno, o jogador foi transparente a mencionar as consequências da sua decisão em reinventar-se, escalpelizando o que o levou a parar. “Estou bastante assustado, de momento a bola branca faz coisas que nunca a vi fazer. Perdi o instinto e o que vejo no fim do taco quando preparo uma pancada não é bom”, confessou um desolado O’Sullivan, descrente nas suas capacidades: “Assusta-me voltar a jogar com público. Estou a passar uma fase horrorosa.”

Não é inédito o inglês, de 49 anos, sucumbir a hesitações. Em 2012, fresco de conquistar um dos seus títulos mundiais, prestou-se a gozar de um ano sabático, ao fim do qual regressou precisamente nos Mundiais do ano seguinte. Empoeirado, mas não enferrujado, conquistou o título. O vácuo do qual hoje se queixa Ronnie O’Sullivan teve pistas passadas e mesmo que lamente “não [jogar] bem desde 2020”, em 2022 venceu o mais recente dos seus sete cetros de campeão mundial no Cruciable, mítica arena em Sheffield onde a decisão tem o seu albergue. E disse na ocasião que estava lá “de férias”.

Tão pouco é raro vê-lo a escancarar dúvidas em público: pelo menos desde 2011 que diz ponderar a retirada. Ainda menos comum são as truculências do seu percurso que se não justificarem, por certo enquadram o âmago que origina as ações de O’Sullivan: em adolescente teve o pai condenado a prisão perpétua, aos 20 anos viu a mãe ser presa, pouco depois agrediu um assessor de imprensa e foi suspenso durante dois anos, foi reincidente no vício em álcool e drogas, visitou várias clínicas de reabilitação, tratou-se de múltiplos episódios de depressão. O rocambolesco pintou a sua vida e ele tem situado este “problema” mais recente: “quando amas tanto alguma coisa e não te devolve nada, ficas desesperado.”

O'Sullivan tem 41 títulos na carreira, um recorde, e nunca desde 1992 falhou uma edição dos Mundiais.
O'Sullivan tem 41 títulos na carreira, um recorde, e nunca desde 1992 falhou uma edição dos Mundiais. Tai Chengzhe

Nem o autorretrato de desgraça será de afiançar por completo, a confiar na descrição feita por Barry Hawkins. Vice-campeão mundial em 2013 ao ser derrotado por O’Sullivan, o também inglês tem-no ajudado desde há um mês, quando Ronnie cedeu ao aborrecimento, foi à mala, resgatou o taco da inatividade e experimentou treinar um pouco. Descreveu que o amigo deu-lhe “uma abada”, mas também o alentou com um “não estás a jogar tão mal como pensas”. Há semanas, um vídeo aparecido nas redes sociais recheou essa presunção ao mostrar o ‘The Rocket’ a fazer um break máximo em menos de sete minutos - consiste em chegar aos 147 pontos, pondo cada bola vermelha no buraco, seguida de uma preta e intercalando com as de cor, sem falhas.

O recorde em competição, na sua posse, está nos cinco minutos e oito segundos.

Sem esperar por aí além de si próprio, Ronnie O’Sullivan poupou-se a falhar o que será a sua 33.ª edição dos Mundiais - lá tem competido ininterruptamente desde a estreia, em 1992. “Nada tenho a perder”, resumiu à “BBC” a já grisalha lenda, gretado na testa pelas rugas de expressão, incapaz de engavetar ao certo o que realmente o afeta: “Chamem-lhe medo do palco, chamem-lhe ‘perdi o meu jeito’. O tipo de nervos que tenho sentido nos últimos dois anos não foram bons. Às vezes nem quis jogar, até me custou tirar os olhos do chão.”

O seu primeiro duelo no torneio que se estende por 17 dias será na próxima terça-feira, contra Ali Carter, adversário com quem já chocou literalmente, cheio de faíscas: feudos de provocações mútuas, nos Mundiais de 2018 deram um encontrão durante um jogo e, o ano passado, O’Sullivan sugeriu-lhe que “resolvesse a sua vida” após o derrotar num Masters. No preâmbulo deste reencontro já o elogiou. Ronnie parece ter as guardas em baixo, no mesmo patamar das expectativas. O inglês é o recordista de títulos mundiais a par de Stephen Hendry. Esperar que descole do outro peso-pesado do snooker será desaconselhado, mas, afinal, trata-se de Ronnie O’Sullivan. Mesmo que esteja descrente de si próprio.