Quando Éric Cantona, na sua viperina língua, chamou “aguadeiro” a Didier Deschamps, a ideia não seria elogiar o seu antigo colega de equipa no Marselha e de seleção. Mas, mergulhando fundo na metáfora, o enfant terrible do futebol francês terá involuntariamente lançado o maior encómio ao antigo médio, com quem nunca foi muito com a cara.
No ciclismo, o aguadeiro é o derradeiro colega de equipa, aquele que se desarma das suas próprias ambições para ajudar o líder mais talentoso e forte. É ele que vem cá atrás, ao carro de apoio, para recolher o maior número humanamente possível de bidões de água, que transporta depois encafuados entre a pele e a licra, para logo a seguir os distribuir aos companheiros, numa dança quase mecânica. Um aguadeiro dificilmente ganha uma prova sozinho, mas é quase impossível ganhar uma grande volta sem gente abnegada à volta.
No campo de futebol, Deschamps era essa cola. Um tipo não particularmente talentoso, mas que geria o meio-campo com inteligência e trabalho. Não era fácil passar pelo sempre bem colocado Deschamps, um amante da ordem, da organização, nisso tão diferente de Cantona, todo ele coração. Das suas tantas recuperações saíam quase sempre outros tantos passes para iniciar ataques e ligar a equipa. Se ao autor desses movimentos pendulares Cantona quiser chamar aguadeiro, é possível que Deschamps tenha abraçado com paixão esse epíteto, tornando-se, no alto daqueles pouco mais de 1.74m, o líder de uma geração francesa que tudo ganhou, devolvendo ao país de Just Fontaine e de Michel Platini o estatuto de potência do futebol.
Essa liderança feita de método foi transposta para o banco, onde, tal como quando jogava, ganhou títulos por onde passou. Primeiro no AS Monaco, onde conquistou a Taça da Liga e chegou com surpresa à final da Champions (perdida para o FC Porto), antes de tornar o mais curta possível a passagem da Juventus na Serie B italiana, depois do caso Calciopoli.
No Marselha, em 2008/09, foi campeão da Ligue 1, algo que o clube do sul não conseguia há 18 anos. Mas o trabalho para o qual estará verdadeiramente talhado apareceu depois. Naturalmente, diga-se. O mesmo trabalho que agora anuncia que vai deixar daqui a ano e meio: quando se desligarem as luzes do Mundial de 2026, Didier Deschamps vai abandonar o banco da seleção francesa, 16 anos depois de lá ter chegado para trazer ordem, a sua amada ordem, a uma casa mais ou menos em chamas.
O regresso da glória
“Em 2026 será o fim, na minha cabeça isso é muito claro. É preciso saber parar, há uma vida depois disto. O mais importante é que França continue no topo como tem estado em todos estes anos”, revelou burocraticamente Deschamps, em entrevista ao canal TF1, sem explosões de emoção ou palpáveis sinais de dúvida.
Dificilmente a história colocará Didier Deschamps num qualquer panteão de grandes pensadores do futebol. As suas valências são outras. Acima de tudo, no topo da hierarquia de Deschamps está um grupo coeso, em que a mentalidade conta quase tanto quanto as qualidades individuais. Elementos criadores de entropia ficam à porta. Uma equipa pragmática e adaptável, capaz de responder a diferentes desafios. Podem apontar-lhe o dedo por em mais de uma década não ter colocado o maior viveiro europeu de talentos a jogar futebol celestial, mas é por isso que o cargo de selecionador lhe assentou tão bem.
“Precisas de jogadores de classe mundial, nunca irás longe sem bons jogadores. Mas isso não é suficiente. Precisas de outros ingredientes como um bom espírito de grupo. Os jogos são decididos em pequenos detalhes e por isso também é preciso um pouco de sorte”, disse em tempos à imprensa sobre essa “corda bamba”, palavras suas, em que parecem sempre caminhar os treinadores. Os 159 jogos que Deschamps já tem como selecionador francês, um recorde na seleção gaulesa, dizem-nos que o treinador nascido em Baiona há 56 anos soube muito bem calcorrear esse limbo.
O homem que, como jogador, capitaneou a França nas vitórias no Mundial de 1998 e Europeu de 2000, voltou à seleção como treinador em 2012, após dois resultados modestos da equipa nas duas grandes competições anteriores. No Mundial 2010, os gauleses ficaram-se pela fase de grupos, numa prova marcada por conflitos graves entre futebolistas e o selecionador Raymond Domenech, de quem se dizia que escolhia jogadores com base no mapa astral - Domenech negou, mas não haverá nada mais antítese de Deschamps, o pragmático Deschamps, do que este rumor. Dois anos depois, com Laurent Blanc, França não passou dos quartos de final no Euro 2012.
Já com o antigo médio no banco, França chegou aos ‘quartos’ no Mundial do Brasil, em 2014 (derrota com a Alemanha, que seria campeã mundial) e no Euro 2016, em casa, levou a seleção novamente a uma final, perdida, para bem dos pecados nacionais, para Portugal. O triunfo dois anos depois no Mundial da Rússia, numa caminhada mais sólida do que vistosa, alicerçada num coletivo forte servido pelo talento sobrenatural de Kylian Mbappé, deixaria Deschamps no seleto grupo de homens campeões mundiais enquanto jogadores e treinadores, com Mário Zagallo e Franz Beckenbauer.
À desilusão da saída precoce do Euro 2020, Deschamps respondeu um par de meses depois com a vitória na Liga das Nações e, em 2022, a seleção gaulesa voltou à final do Mundial. Só uma Argentina em missão quase mitológica para oferecer o título a Messi travou nova demonstração de solidez coletiva.
Desencontros com Benzema e Mbappé
A derrota nas meias-finais do Euro 2024, frente a uma Espanha em estado de graça, foi a primeira de França em encontros a eliminar no tempo regulamentar numa fase final desde 2014. Agora sabemos que Deschamps terá perdido aí oportunidade de ouro de se tornar também um dos únicos homens a sagrar-se campeão da Europa por uma seleção como jogador e treinador, repetindo o feito de Berti Vogts. Uma vitória na despedida, no Mundial de 2026, pode deixá-lo noutro restrito grupo, juntando-se ao italiano Vittorio Pozzo (1934 e 1938) como os dois únicos treinadores campeões mundiais por duas vezes.
Polémicas também as há, claro. Uma das mais espinhosas a não chamada de Karim Benzema e Hatem Ben Arfa ao Euro 2016. O avançado, então uma das estrelas do Real Madrid, estava envolvido numa investigação judicial, suspeito de chantagem ao colega Mathieu Valbuena por causa de um vídeo de teor sexual. Éric Cantona, o verdadeiro némesis de Deschamps, acusou então o selecionador de racismo, numa entrevista ao “The Guardian”, frisando que a origem norte-africana dos dois jogadores poderia ser a razão para a decisão. Deschamps colocou Cantona em tribunal.
As circunstâncias da saída de Benzema da seleção, depois de contrair uma lesão a dias de arrancar o Mundial de 2022, nunca foram totalmente esclarecidas. A recuperação do avançado parecia possível ainda a tempo de jogar na competição, mas terá sido dada ordem a Benzema para regressar ao seu clube, azedando a relação do atacante com o selecionador.
Mais recentemente, Deschamps deixou Kylian Mbappé de fora nos últimos estágios da seleção, que coincidiram com o difícil início de caminhada do avançado no Real Madrid. Se em setembro Mbappé pediu para não ser chamado, nos jogos de novembro a decisão terá sido unicamente de Deschamps. “Foi uma decisão do treinador. Eu queria ir, não sei dizer porque é que não fui chamado”, afirmou Mbappé num programa do Canal+. O “aguadeiro” achou que a cola não deveria ter a maior estrela francesa da atualidade.