O mundo foi agarrado pelos colarinhos e prestou atenção, em 2011, quando um americano já com idade para ter juízo, estudioso de mapas subaquáticos e dos humores das ondulações, se fez à Nazaré. À boleia de uma moto de água, colete insuflável colado ao corpo e emborrachado em valentia, Garrett McNamara fez-se a uma gargantuesca onda a rondar os 23,7 metros, pedindo a todos os santinhos que a aventura corresse bem. Era 1 de novembro. A partir desse dia, o ideário comum da humanidade acolheu uma nova companhia: às vezes, a natureza ficava rabugenta e formava vagas gigantescas de mar que rebentavam com fúria mesmo à frente de uma vila piscatória na região oeste Portugal.
As ondas da Nazaré não eram um segredo. Já havia gente que lá andasse, mas nenhum deles era Garrett McNamara, um nome conhecido no surf, movedor de meios que até teve um helicóptero a despejá-lo na água antes de apanhar a tal onda recordista, à época a maior alguma vez surfada, seduzido por um e-mail que recebera de um nativo. Com os anos, as explicações científicas banalizaram no conhecimento coletivo a consciência de que aqueles monstros se formavam devido a um desfiladeiro submarino, o Canhão da Nazaré, vieram acompanhadas da crescente exploração do agreste fenómeno ali formado.
Os surfistas acorreram à Nazaré para lá ficarem na temporada de inverno e a caça à adrenalina de descer prédios com vários andares de água fê-los quebrarem mais recordes. O brasileiro Rodrigo Koxa desceu uma montanha de 24,3 metros em 2017 e Sebastian Steudtner, um alemão, demorou três anos a fixar nos 26,1 metros a maior onda surfada por um humano. Quando ambos se atreveram a desafiar a vida, o promontório abeirado ao mar onde pontua o farol do Forte de São Miguel Arcanjo enchera-se de curiosos e famintos por presenciarem essa raridade. Nem uma década antes, nenhum corpo se avistava lá para assistir ao feito de McNamarra.
Com a popularidade das ondas gigantes da Nazaré vieram pessoas, motos de água, hotéis, novos negócios, turistas e reboliço a lugar. E a World Surf League (WSL). Quem organiza as principais competições da modalidade incluiu, em 2016, os mamutes aquáticos da região oeste de Portugal como paragem do seu circuito Big Wave e desde aí que se realiza o Nazaré Challenge em cada época, algures entre novembro e março, conforme o despertador toque nas condições. Este ano, como em todos os anteriores, não haverá qualquer mulher portuguesa a competir.
Joana Andrade sentiu-se profundamente desiludida. Aos 44 anos, é a única surfista nacional que se dedica às ondas gigantes e esperava que o seu “percurso e experiência fossem valorizados”. Desabafou-o por escrito, num comunicado a lamentar a “falta de respeito e reconhecimento pelo talento nacional” que viu na decisão da WSL em não convidar qualquer portuguesa a competir”. Não sendo obrigação, nem estando escrito nas regras, é bastante comum a entidade atribuir wildcards a surfistas locais nas suas provas, sejam de ondas grandes ou ‘normais’. Não foi o caso na Nazaré.
Daí a surfista ter “aberto o jogo todo” e decidido “fazer barulho”, explica à Tribuna Expresso. “Fiquei chocada.” Na queixa que publicou, Joana Andrade mencionou como “este ano” a WSL “decidiu realizar o evento sem sequer convidar uma portuguesa”, mas poderia ter enaltecido que é desde sempre, já que em provas na Nazaré e nascidos em Portugal apenas competiram homens - Nicolau Von Rupp é um habitual, como João de Macedo, António Silva ou o mais recente António Laureano, há uns anos também o foi Alex Botelho. “Levanta questões sobre os interesses que estão a influenciar essas escolhas.”
Barulhenta o quanto baste na sua crítica, não querendo aprofundar em demasia, Joana Andrade conta que procurou logo falar com quem de direito na WSL ao saber que não constava no lote de competidores. Fora as dúvidas quanto à sua aptidão na moto de água - ao ser uma prova de tow-in, os surfistas formam pares e um reboca o outro para a onda -, disseram-lhe que não se mostrara, pelos vistos, interessada o suficiente em participar. “Nem sequer enviaste e-mail a dizer que querias entrar”, ouviu de responsáveis da entidade. Deram-lhe a entender que haveria de ter azucrinado, no bom sentido, as pessoas imbuídas de escolher quem é selecionado. Só assim teria hipóteses de ser convidada.
Instada a comentar o caso de Joana Andrade, a WSL não respondeu.
O choque da portuguesa com a situação aumentou. Em 2015, uma onda sua chegou a ser nomeada como “Ride of the Year” dos Prémios XXL da World Surf League, reservados a distinguir os melhores da categoria de gente que desafia as odes do mar gigante, mas não é desta que vai competir na Nazaré, “na minha Nazaré”, como legendou a fotografia que fez acompanhar o seu comunicado. As mulheres em prova serão as brasileiras Maya Gabeira e Justine Dupont, além da francesa Michelle des Bouillons. “Não é apenas sobre a minha ausência, mas sobre como estas decisões impactam o desenvolvimento do surf feminino e da nossa representação internacional”, lamentou Joana Andrade.
Mas será sobre mais do que isso, para lá do caso singular da portuguesa de 44 anos que verá outra edição do Nazaré Challenge a decorrer sem a sua presença: “Usam as nossas ondas, o nosso país, mas deixam de lado quem realmente construiu e representa esta história.”