Chovia que se fartava, caíam cães e gatos do céu, o relvado encharcado e as pessoas sumidas das primeiras filas de cadeiras em Alvalade. Havia jogadores a encolherem o esqueleto, o frio e o molhado a conspirarem para o desconforto mesmo antes de o jogo começar. O árbitro apitou. O ímpeto do Famalicão atacou, chegou à linha de fundo e cruzou para a área logo na tentativa inaugural. A bola foi cortada, xô daqui, pelo Sporting. Houve carambolas. Foi devolvida à relva e chegaria ao furacão pálido no meio da intempérie chuvosa, que estava enraivecido.

Colado à linha, na esquerda, Viktor Gyökeres deixou o passe correr. Livrou-se de um adversário, embalou na sua passada intermitente de quem parece coxear, quando coxos estão os olhos que o veem, veio outro defesa do Famalicão que evadiu pondo a bola de um lado e esgueirando-se pelo outro. De repente, já galgara metade do campo, estava na área. E o sueco cruzou rasteiro enquanto um bruaá no estádio acompanhava o passe rasteiro, estavam dois jogadores do Sporting sozinhos. Trincão, o primeiro, foi trapalhão ao falhar na bola. O segundo, inesperadamente Ivan Fresneda, acertou o remate. Era um golo logo no primeiro minuto.

Quando um dito grande, dono de posses estranhas aos outros, arranca um jogo assim de rompante, em sua casa, ainda para mais marcando o centésimo golo na época, tomem cautela as visitas. O cenário até se precipitava sobre o entusiasmo do Sporting: tantas agruras recentes depois, Hjulmand e Morita eram titulares, já livres de lesões; o faminto Gyökeres parecia, mais uma vez, curado da sua misteriosa mazela; o assim-assim-amado Fresneda atirava a sua terceira bola para dentro da baliza desde que o Natal quase o transferiu para longe por quase não contar antes de Rui Borges chegar ao clube. Era a dança da chuva dos leões.

Durante uns minutos ainda cantariam mais. Morita chegava à frente com uma desmarcação das suas para quase servir Trincão com um pequeno cruzamento por alto e um livre de Gyökeres, batido furiosamente, não distou por aí além da barra. Era o Sporting a desfrutar do embalo, queria agarrar ao arranque com a chuteira a pisar o acelerador. Mas durou pouco, até ao Famalicão autoritário, 9.º classificado do campeonato, se impor na partida como um dos ditos grandes se costuma elevar sobre adversários mais modestos.

Gualter Fatia

Foi uma boa meia hora, a equipa com os centrais abeirados da linha do equador do relvado, os médios a reagirem num ápice à perda de bola, aniquilando os espaços e impedindo qualquer à vontade nos adversários, com os atacantes que incomodavam os defesas na simplicidade das ações e esperteza de movimentações eram os que vestiam de branco liso. A perder, o Famalicão tomou o jogo de assalto. Tom van de Looi liderava a construção das jogadas, Mirko Topić coordenava a pressão alta, a todo o campo, e Gustavo Sá enchia esse mesmo campo quando tinham a bola, pulvilhando as jogadas com arte em pequenos toques, destrancando combinações no centro-direita com Sorriso, o extremo artimanhas.

Teve mais bola o Famalicão, chegou-se à frente no domínio territorial, roubava rápido o que perdia na metade do Sporting e azucrinava a organização da linha defensiva com as movimentações de Óscar Aranda, ora dado ao alcance de Diomande, ora indo as redondezas dos centrais de fora para os cativar a deslocarem-se para o caçarem quando o espanhol se dava às jogadas para combinar. Foi o Famalicão a equipa mandona até ao intervalo, obrigando Rui Silva a trabalhos - e impedindo o guarda-redes de lograr mais. Num lance de cruzamento, o incauto Diomande saltou com o cotovelo à frente, acertando na cabeça de Václav Sejk, provocando um penálti com os braços emulando o que já fizera na Vila das Aves.

Dos 11 metros, o tranquilo Aranda empatou (35’). No seu pescoço, tatuada a letra fina, lia-se "hakuna matata", expressão suaíli para qualquer coisa como "sempre problemas".

Enredado na teia de pressão famalicense, o Sporting estava mergulhado em vários. Nem com os seus dois melhores médios devolvidos à equipa o Sporting era capaz de resistir com bola. Com o bloco recuado no seu meio-campo, se a recuperava, era unidimensional a lançar passes longos para um Gyökeres de costas para a baliza, a ser chateado pelos centrais, para tentar segurar. Apenas já perto do intervalo os leões encontraram Maxi Araújo, em duas jogadas de rápida desenvoltura, na área, onde o uruguaio rematou. A pista estava aí: conseguisse injetar velocidade na troca de bola para evitar que os adversários caíssem logo a tentar roubá-la, o Sporting libertava-se da rede. No descanso, era o Famalicão que somava mais passes trocados.

Gualter Fatia

Talvez nenhuma equipa fizera, esta temporada, tal encosto aos leões em Alvalade, para o campeonato. Era imperativo para Rui Borges dotar a sua equipa de armas ou meios que lhe dessem oxigénio, ou um antídoto para combater o ascendente dos visitantes. O truque esteve na tentativa de ter a bola, primeiro que tudo, além de mexê-la mais rápido.

Acelerado um pouco o ritmo dos passes, o Sporting prolongou a vida das suas jogadas. Maxi deu as suas correrias com a bola para puxar a equipa para a frente. Quenda fez o mesmo, rematando rasteiro sem pontaria, na esquerda, antes de acertar com força em Lazar Carević, o guarda-redes que desviou a bola para o poste. Avivavam-se os leões. Não na mão que tinham no jogo, ainda intermitente, mas nas investidas que já conseguiam trocar com o Famalicão que já via mais trânsito e contracurvas para alcançar as receções de Gustavo Sá e Óscar Aranda no meio-campo contrário. O Sporting regressou a conseguir ter a bola mais tempo, a reencontrar o seu chamariz, porque a intenção não era tê-la durante muito.

Era provocar o seu isco predileto. Um hábito antigo da equipa e cada vez mais um preferido na vigência de Rui Borges.

À mínima bola em que a equipa atraía a pressão contrária e via a linha defensiva do Famalicão dar passos em frente, era disparada a pistola, tiro para o ar e arrancava Gyökeres numa diagonal, de dentro para fora, a pedir um passe com que o atento Hjulmand, o exímio pé esquerdo de Quenda (mudado para a direita, para ser esse lançador) ou uma combinação mais curta de Trincão o satisfaziam. Igual à chuva cadente em Alvalade, descrever como o jogo se pôs à disposição do sueco é um exercício já molhado de tanta repetição. Quando o Sporting moldou as operações ao jeito do seu avançado, proporcionadas as mínimas condições para a sua natureza explodir, tudo mudou.

JOSE SENA GOULAO

O abominável homem dos golos dobrou olhos, pernas e rins a Enea Mihaj e Justin de Haas, inglórios centrais do Famalicão que o tiveram de perseguir uma e outra vez e mais uma. De uma correria de Gyökeres com remate de ângulo apertado surtiu a sobra com que Maxi Araújo sofreu o penálti com que o sueco (64’) fez o seu 26.º golo no campeonato, o 40.º da temporada. Mas ele não cessou, nunca abrandou. Nem quando o imprudente uruguaio, indo cheio de pressa a pressionar Gustavo Sá pelas costas, cravou a sola no tornozelo do adversário e foi expulso. Faltavam 12 minutos de ação, restava ainda bastante energia em Gyökeres.

Teve o Sporting que se adaptar, baixar linhas, encolher-se um pouco na cautela. O antes temível Famalicão já não dispunha do mesmo depósito, o combustível escasseava apesar das substituições, Aranda e Gustavo Sá sentados estavam, Sorriso em breve para lá foi após disparar o último remate da equipa, à distância, que levou a bola a bater à frente de Rui Silva e o guarda-redes dar-lhe uma palmada dali para longe. Com um homem a mais, a equipa de Hugo Oliveira não dispunha todavia da compostura da primeira parte. O momento já não era esse. Embalada na obrigação de ir para cima do Sporting, empurrou um pouco mais as portas que os leões queriam abrir desde o intervalo.

Mesmo sem controlo, desprovido de um plano assente na constância e no conforto em querer dominar a todo o campo, o Sporting teve os espaços para continuar a lançar Gyökeres. Outra bola teve o sueco na área, não em modo cavalo selvagem, a galopar a preceito, mas em trote, a encarar um adversário hesitante em por um pé à bola, temerário o suficiente para deixar o sueco cruzar rasteiro e Geny Catamo, na pequena área, fixar o resultado (88’) com a segunda assistência do matulão no jogo.

Restam oito jornadas no campeonato e os leões mantiveram-se líderes. Sofreram e custou-lhes, veremos se outra equipa fará outra metade de partida em Alvalade como a que o Famalicão deixou por lá, com o peito feito e cheio de bem-fazer. Refeito do seu melhor par de médios, mas a permanecer nos três centrais, o Sporting de Rui Borges continuam alheio a ter um encontro tranquilo, controlado e assente em terreno plano. Parece existir sempre algum sobressalto no trilho dos leões. Quando os há, não precisa Viktor Gyökeres de colocar tinta na sua pela virgem para que aos leões seja cada vez mais fácil, crescentemente mais dependente também, dizer “hakuna matata”.

Porque o treinador não tem problemas em tentar moldar as toadas de jogo para abusar de situações que aproveitem a melhor arma que tem.