Se o momento que levou ao 4-3 no Vitória-Sporting fizesse parte de um filme, diríamos que era irreal, que tudo era demasiado dramático, excessivamente épico. Com 3-3 no marcador, com a noite a ser uma montanha-russa de golos e emoções, com os da casa embalados por irem do 3-1 para o empate em 12 minutos, os minhotos dispuseram de um livre na direita.
A bola viajou do delicado pé esquerdo de Telmo Arcanjo rumo a Dieu Michel, que a colocou no fundo da baliza. Em 15 minutos, o Vitória foi da desvantagem para a liderança, assinando o 4-3 através de um canadiano de 20 anos que há um mês andava a atuar contra o Joane, no quarto escalão nacional, representando a equipa B dos vimaranenses. Dias depois, eis o inexperiente ponta-de-lança, lançado devido à praga de lesões no ataque, a marcar contra o campeão nacional.
O conto de fadas parecia perfeito para os da casa, uma remontada nas costas do jovem recurso. Mas ainda havia mais dramatismo no jogo, mais contornos épicos. Aos 95', Trincão rematou não com o pé esquerdo, mas talvez com a mão, quiçá com uma varinha, quem sabe com um qualquer objeto mágico que tivesse à disposição. A bola, enfeitiçada, entrou junto ao poste direito do Vitória.
4-4. Um encontro frenético decidido de forma quase irreal, embalado pela mística de Guimarães, pela crença do Vitória, pela qualidade de alguns jogadores do Sporting. E, também, empurrado pela instabilidade dos leões, pela dificuldade em segurar uma liderança de 3-1 à entrada para a reta final da contenda.
Depois de novo episódio do clássico nevoeiro da Choupana, o jogo do D. Afonso Henriques chegou sob o signo da falta de tempo. Uma semana depois de serem apresentados, Daniel Sousa e Rui Borges orientaram o segundo encontro ao serviço de Vitória e Sporting: Daniel Sousa tenta superar o legado de Rui Borges, Rui Borges tenta esquecer a herança de João Pereira e reaproximar-se do feito por Ruben Amorim.
Contas feitas, a viagem no carrossel de espanto deixa o Sporting à mercê de nova igualdade pontual com o Benfica. Para o Vitória, o acreditar acabou por ficar a meio, acrescentando doses de trauma ao trauma dos minutos finais: nos últimos quatro jogos que disputou, a equipa de Guimarães cedeu sempre o empate depois dos 85', deixando escapar 6 pontos nas derradeiras três jornadas com golos encaixados em tempos de descontos da segunda parte.
Neste duelo de conjuntos que, orientados por estes técnicos, são entidades recém-nascidas, a receção de Guimarães ao seu ex-treinador teve alguns assobios e uma tarja acusatória: “Num dia só Vitória, no outro um traidor”.
Indiferente ao regresso do transmontano ao estádio que ainda no dia de Natal era o seu, o Sporting entrou a todo o gás no desafio. Na verdade, ambas as equipas entraram com pressa no embate, como se a juventude de ambos os coletivos com estes homens no banco os empurrasse para a frente, para a pressa, para a baliza adversária. Ainda não se haviam disputado 15 minutos e já havia três bolas no fundo das balizas.
Os visitantes chegaram com um plano claro. Agressividade na pressão, recuperações no meio-campo adversário, esticar na velocidade de Gyökeres. O sueco, o melhor marcador do mundo em 2024, demorou menos de dois minutos para marcar em 2025, aproveitando uma assistência de Quenda.
O Sporting assustava o Vitória com os seus ataques rápidos, mas continua a assustar-se com os seus guarda-redes. O primeiro disparo dos locais, um livre de Tiago Silva, descaído para a esquerda e que não foi propriamente um míssil rumo às redes dos leões, não foi defendido por Franco Israel, que sofreu quatro golos em cinco remates enquadrados com a baliza. Sete minutos e 1-1.
O acelerado guião da madrugada do embate não permitia respirar. Tal como os campeões nacionais não deixavam que os minhotos tivessem conforto na circulação dentro do seu meio-campo, com constantes perdas de bola. Muito atento a transformar as recuperações em bolas perigosas, Quenda lançou o sueco mais letal do futebol nacional. Gyökeres foi Gyökeres, a vida em loop: desmarcação, remate, golo, festejo da máscara. 14 minutos e 2-1.
O Vitória não baixou os braços. Gustavo Silva causou muitos problemas à defesa visitante, com desmarcações agressivas e um remate muito perigoso logo após o 2-1. Sairia lesionado antes do descanso, juntando-se à vaga de lesões dos atacantes do clube de Guimarães. Entrou Dieu, cheio de vontade de passar do quarto escalão para a ribalta.
A vertigem dos primeiros 20’ seria sucedida por uma acalmia. À medida que o intervalo se aproximou, as equipas recém-nascidas ganharam cautelas, calmas, foram colocando barreiras e portagens bloqueando as respetivas balizas.
Quem não entende de cautelas, de anos novos ou de equipas seminovas é Gyökeres. O futebol sempre igual do sueco é feito do vício em atacar a baliza que tem à frente e foi assim que, aos 57', Viktor concluiu uma excelente jogada entre Maxi Araujo e Morita para chegar aos 21 golos na I Liga. Gyökeres termina a primeira volta com um registo que fá-lo-ia ser o melhor marcador do campeonato em oito das edições que já se disputaram no século XXI.
O Sporting seminovo, do fim dos três centrais, entrou depois em pausa. Sem bola, foi recuando, quase convidando o Vitória a acreditar. A proposta foi aceite.
Se o começo da partida foi frenético, o final não menos o foi. Houve três golos nos 14 minutos iniciais? Então tomem lá quatro golos entre os 69' e o apito final.
A passividade do Sporting foi a passividade de Matheus Reis a defender Arcanjo, o agitador que Daniel Sousa foi buscar ao banco para virar o desafio ao contrário. Correria do canhoto, cruzamento para Kaio César, eis o Vitória de volta à discussão do marcador.
Os visitantes eram um conjunto fantasmagórico em campo. Sem luta, sem tranquilidade, acumulando amarelos — quatro vistos nos minutos finais — e desprotegendo a defesa. João Mendes, na sequência de um cabeceamento à barra de Dieu, fez o empate.
Aos 85', o jovem canadiano cujo último golo apontado na carreira fora ao Brito, no quarto escalão, deixou o D. Afonso Henriques em estado de loucura coletiva. Ali, naquele instante, naquele 4-3 contra o campeão nacional depois de estar a perder por 3-1 meros 15 minutos antes, sintetizava-se a mística de um dos estádios mais especiais do nosso futebol.
Ainda havia mais um toque de arte nesta noite inaugural da bola nacional em 2025, este pontapé de saída que, ainda o ano é tão jovem, mas já é claro candidato a jogo do ano. Trincão fez o 4-4 aos 95', mesmo em cima do fecho do desafio. Só aí foi possível respirar, só aí nos foi permitido descansar depois da viagem na montanha-russa.