Um vídeo chocante de uma escola na Moita expôs recentemente a cruel realidade que muitas crianças autistas enfrentam diariamente.
Um estudante de 14 anos, diagnosticado com autismo, foi brutalmente agredido por um colega mais velho, sendo agarrado pelo pescoço, derrubado e repetidamente pontapeado, enquanto outros alunos filmavam o incidente sem intervir.
Este episódio perturbador não é um caso isolado, mas sim um reflexo de uma crise sistémica que assola as nossas escolas.
O incidente na Escola Básica Fragata do Tejo revela padrões alarmantes no nosso sistema educativo. Crianças autistas, muitas vezes com dificuldades de comunicação, tornam-se alvos fáceis devido a incompreensão e estereótipos.
A passividade dos colegas que optaram por filmar em vez de ajudar normaliza a violência. A suspensão do agressor só ocorreu após intervenção policial, indicando falhas graves na prevenção e gestão destes incidentes.
A estigmatização leva ao isolamento progressivo, trauma psicológico duradouro e evasão escolar. No caso da Moita, os pais do jovem agredido estão a considerar mudar o filho de escola, evidenciando o sentimento de insegurança e desconfiança no sistema educativo.
A situação actual
Um levantamento recente realizado pela FENPROF em 2023/2024, abrangendo todos os distritos do continente e envolvendo 112.187 alunos, 12.157 docentes e 5.266 assistentes operacionais, revelou dados preocupantes.
Os diretores dos Agrupamentos de Escolas e Escolas Não Agrupadas (AE/ENA) afirmaram que o número de Docentes de Educação Especial (73%), Assistentes Operacionais (78%) e Técnicos Especializados (85%) era insuficiente.
Além disso, apenas 6% dos Assistentes Operacionais têm formação específica para trabalhar com alunos com medidas seletivas e/ou adicionais.
A exclusão de alunos autistas manifesta-se a nível estrutural e social. As escolas frequentemente carecem de formação especializada para professores, planos individualizados de integração e equipas multidisciplinares permanentes.
Este inquérito levantamento da FENPROF mostra que os alunos com medidas seletivas e adicionais representam cerca de 8% do total dos alunos, com 3,5% recebendo apenas apoio indireto do Docente de Educação Especial.
Cerca de 20% das turmas estão constituídas ilegalmente, com mais de 2 alunos com necessidades específicas e/ou mais de 20 alunos por turma.
Quando questionados, 83% dos diretores afirmam que seus AE/ENA não têm os recursos necessários para uma educação verdadeiramente inclusiva.
Um Problema Enraizado
Relatos de maus-tratos, negligência e exclusão de crianças neurodivergentes são alarmantemente frequentes nas escolas portuguesas, conforme evidenciado pelos testemunhos recebidos pelo Movimento para uma Inclusão Efectiva.
Um caso ilustrativo é o de uma criança de 7 anos, diagnosticada com síndrome de Asperger, que enfrenta dificuldades significativas na adaptação escolar devido à falta de apoios adequados.
Apesar dos pedidos dos pais desde o jardim de infância, a escola alega não ter recursos disponíveis, resultando em exclusão social e problemas emocionais para a criança.
Outro caso preocupante envolve uma criança de 3 anos, com diagnóstico de autismo e atraso global de desenvolvimento.
Ao tentar matriculá-la, a mãe foi informada que a escola "não tem condições" para receber o seu filho, sendo encaminhada para outra instituição.
Esta atitude viola claramente as directrizes do Ministério da Educação, que indicam que qualquer escola deve estar apta a receber crianças com Necessidades Educativas Especiais (NEE).
Exclusão e bullying
A história de um aluno diagnosticado com hiperatividade e défice de atenção, e posteriormente com Síndrome de Asperger, revela um padrão perturbador de exclusão e incompreensão.
Desde o 1º ano, a criança enfrentou dificuldades de adaptação, sendo frequentemente alvo de intervenções policiais na escola.
A falta de compreensão levou a acusações de instabilidade familiar e até a uma ordem judicial para os pais frequentarem uma formação parental, sem que a escola fornecesse o apoio adequado.
O caso de outro estudante com TDAH demonstra como o bullying pode ser institucionalizado.
No 7º ano, a directora ligava constantemente à mãe devido a conflitos e numa reunião de pais, várias mães solicitaram a reprovação e suspensão deste aluno e outros com mau comportamento, revelando uma profunda falta de empatia e compreensão das necessidades especiais.
Negligência e falta de formação profissional
A história de uma criança surda ilustra a falta de preparação das escolas para lidar com a neurodiversidade.
Aos 5 anos, após anos de diagnóstico tardio e falta de apoio adequado, a criança foi finalmente integrada numa turma de surdos.
No entanto, no ano seguinte, foi-lhe atribuída uma educadora sem qualquer conhecimento prévio do ensino a surdos ou de Língua Gestual Portuguesa (LGP), que escolheu a turma "porque achou que era giro".
O caso de uma criança diagnosticada com Síndrome de Asperger no 1º ano demonstra como a falta de estabilidade e apoio adequado pode levar a retrocessos significativos na aprendizagem.
Após três mudanças de professoras titulares em setembro, a criança perdeu a capacidade de reconhecer letras que anteriormente identificava com facilidade, além de ter desenvolvido problemas comportamentais.
A luta dos pais por inclusão e justiça
Os pais destas crianças enfrentam uma batalha constante.
O testemunho de uma mãe de um aluno autista não verbal teve que entrar na sala de aula com o filho durante dias para explicar à professora como lidar com ele, enfrentando a rejeição da comunidade escolar e a pergunta sobre a razão pela qual não colocava o filho numa "escola para crianças assim".
Outra mãe relata a frustração de tentar obter apoio da escola. Após solicitar uma reunião urgente para discutir as preocupações sobre o filho, passou mais de um mês sem obter resposta.
Quando apresenta queixas, a coordenadora adopta uma postura defensiva, insinuando que os problemas podem ter origem em casa, desviando o foco da necessidade de encontrar soluções.
Um apelo à mudança
A inclusão real exige mudanças profundas no sistema educacional:
- Formação obrigatória para professores: Todos os profissionais da educação devem ser capacitados para compreender e atender às necessidades das crianças autistas.
- Planos Individualizados: Cada aluno deve ter um plano pedagógico adaptado às suas necessidades específicas.
- Equipas Multidisciplinares: Psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros especialistas devem estar disponíveis nas escolas para apoiar alunos e professores.
- Protocolos contra o bullying: Medidas claras para prevenir e lidar com casos de violência devem ser implementadas em todas as instituições.
- Sensibilização comunitária: Campanhas educativas podem ajudar a combater estigmas e promover a aceitação da neurodiversidade.
O caso da Moita não é sobre um aluno, um agressor ou uma escola isolada.
É um reflexo do que falhamos colectivamente em construir: um sistema educativo onde a diferença não é punida, mas protegida e valorizada.
Até criarmos verdadeiros espaços de inclusão, continuaremos a testemunhar incidentes chocantes e a questionar quem realmente está a falhar com as nossas crianças.
É imperativo que a sociedade portuguesa, desde decisores políticos a educadores e pais, una esforços para transformar as nossas escolas em ambientes seguros e acolhedores para todos os alunos, independentemente das suas necessidades específicas. Só assim poderemos garantir um futuro verdadeiramente inclusivo e justo para todas as crianças.
Estes casos não são exceções, mas sintomas de um sistema que falha em compreender e acomodar a neurodiversidade.
É fundamental que Portugal adopte medidas concretas para transformar as suas escolas em espaços verdadeiramente inclusivos.
O futuro de Portugal depende da nossa capacidade de criar uma sociedade verdadeiramente inclusiva, começando pelas nossas escolas.
Não podemos continuar a ignorar o sofrimento silencioso de tantas crianças.
É hora de quebrar o silêncio e transformar as nossas escolas em espaços onde cada criança, independentemente da sua neurodiversidade, possa aprender e crescer em segurança e dignidade.