Portugal conheceu, a partir da década de 1960, os grandes dilemas que vão anunciar a mudança política que desembocou no 25 de Abril de 1974:

  • um acelerado processo de crescimento económico e de mudança social, marcado sobretudo pelo reforço dos laços com a então chamada Europa Ocidental;
  • o desenvolvimento do colonialismo tardio e de Guerras Coloniais;
  • e, finalmente, o crepúsculo do Ditador e a sua substituição por Marcelo Caetano, que protagonizou as contradições de uma modernização autoritária falhada.

Desenharam-se nessa década as “opções políticas” que iriam marcar o processo de transição para a democracia.

Neste primeiro debate, dedicado às “opções políticas”, percorremos algumas obras marcantes da fase final da Ditadura, expressando a diversidade política e ideológica que marcava o autoritarismo tardio, desde ‘Rumo à Vitória’, de Álvaro Cunhal, ao ‘Portugal Amordaçado’, de Mário Soares, sem esquecer ‘Portugal e o Futuro’, de Spínola, entre outros.


Matilde Fieschi

A abrir a sessão, o historiador António Araújo refere a importância da realização de um colóquio sobre as origens intelectuais do 25 de Abril, “porque são elas que nos permitem distinguir entre aquilo que poderia ser apenas um golpe militar e o facto de se ter convertido numa revolução, precisamente porque existia um lastro cultural e intelectual que assim o permitiu”. E esclarece: “o 25 de Abril cultural precedeu o 25 de Abril político e sobretudo o 25 de Abril militar”.

Sobre a coletânea de textos ‘Católicos e a Política de Humberto Delgado a Marcello Caetano’, compilados pelo Padre José da Felicidade Alves e publicado em 1969, Araújo lembra que o responsável pela edição desta obra “depois de ter sido um 'enfant gatê' do cardeal Cerejeira, entra em rota de colisão com o regime, sobretudo devido às suas homilias nos Jerónimos, o que causou um grande escândalo”.

Esta compilação de textos teve uma grande tiragem e ficou conhecida como “a oposição do stencil e do policopiador, isto é, uma oposição feita com base em abaixo-assinados, em petições, em fotocópias, ou, se quisermos, policópias”.

Matilde Fieschi

Ao politólogo e escritor Jaime Nogueira Pinto coube falar sobre a obra ‘Na Hora da Verdade: colonialismo e neo-colonialismo na proposta de Lei de Revisão Constitucional’, de 1971. Sobre o autor Fernando Pacheco do Amorim, Nogueira Pinto começa por dizer que o conheceu bem: “Fui amigo dele, é uma personalidade muito interessante, porque vinha de uma família muito salazarista, era filho do professor Diogo Pacheco de Amorim, que era um homem de Coimbra, muito próximo de Salazar.”

Lembrando que, em 1946, Fernando Pacheco de Amorim esteve envolvido numa revolta anti-Estado Novo, a Revolta da Mealhada, e passou dois anos preso em Peniche, Nogueira Pinto afirma que o autor de ‘Na Hora da Verdade’ “não era propriamente um alto dignitário do regime. É um homem crítico de algumas das reformas, é um integracionista e pensa que há uma deriva neocolonial em relação ao futuro do Ultramar”.

Neste livro, publicado como edição de autor, Pacheco de Amorim acusa Marcello Caetano de “não ser claro sobre o que quer fazer, de ser ambíguo”. “Salazar era um homem de decisões, boas ou más, mas tomadas. Marcello Caetano é muito um ‘hamletiano’, é um homem que faz sempre uma equação das razões pró e contra e depois vai ver o que custa na decisão que tomar e depois acaba por não tomar decisão nenhuma”, afirma Nogueira Pinto.

Matilde Fieschi

Ainda nesta sessão, coube ao historiador José Neves falar sobre a obra de Álvaro Cunhal, ‘Rumo à Vitória: as tarefas do partido na revolução democrática e nacional’, de 1964. Segundo o investigador, este é “um livro que ocupa um lugar muito central na história do Partido Comunista, porque está na base da elaboração do primeiro programa político, com princípio, meio e fim, do PCP".

“Várias das ideias que se encontram nesta obra serão plasmadas depois em vários documentos congressuais e programáticos do Partido Comunista Português e algumas dessas ideias podem ainda ser encontradas hoje, no discurso e na análise e nas propostas políticas do Partido Comunista Português. Portanto, sendo um documento que tem que ver com a história da resistência à ditadura do Estado Novo, tem uma cronologia um pouco maior”, esclarece José Neves.

‘Rumo à Vitória’ é resultado de um trabalho de equipa, que levantou dados e informações, que depois fizeram chegar a Álvaro Cunhal, e onde se encontram 'argumentos muito terra a terra’, como este, que Neves cita: “Consome-se mais batata, dizem os fascistas, é verdade, mas come-se menos peixe e menos carne. Bem pode dizer o fascista Cardeal Cerejeira que a grande fome do homem atual é uma fome metafísica, mas hoje em Portugal há missas a mais e pão a menos. (…) Em Portugal passa-se fome e muita fome e, além disso, para viver não basta comer”.

SIC Notícias

Matilde Fieschi


À investigadora Rita Almeida Carvalho coube falar sobre a obra de António de Spínola, ‘Portugal e o Futuro’, publicada no início de 1974. “O conteúdo deste livro não é revolucionário e não é assim uma coisa estrondosamente nova como se poderia pensar”, afirma.

“Spínola primeiro faz um diagnóstico da crise em 1974, em Portugal, depois acaba por explorar aquilo que ele diz que são as duas posições existentes relativamente ao Ultramar: uma é o integracionismo e a outra era o puro e simples abandono. O que Spínola pretendia era a construção de uma comunidade lusíada em que os laços morais prevalecem sobre os estatutos políticos. Ele está convicto de que as populações africanas vão querer continuar a ser portuguesas e diz que é preciso respeitar as culturas e as tradições e também criar um sistema em que as pessoas se vejam representadas.”

Para a doutorada em História Contemporânea, Spínola “não é um intelectual e isso é claro nesta obra”. “A importância deste livro é muito mais simbólica do que propriamente por via do seu conteúdo. O livro foi amplamente divulgado, quer pelo Expresso, quer pelo Jornal República, porque em 1974 há em Portugal uma sociedade que é capaz de acolher e discutir as ideias do general Spínola”.

Sobre a obra de Mário Soares, ‘Portugal Amordaçado’, de 1972, falou Tiago Fernandes, professor de Ciência Política e especialista em movimentos sociais e democracia. “Em primeiro lugar é um livro de denúncia política de um regime autoritário, uma invetiva contra um inimigo político, argumentada, mas é também um dos primeiros livros de ciências sociais, ou até quase de ciência política, de análise das estruturas políticas e sociais que sustentam uma ordem política autoritária.”

“O livro é de 1971 e naquela altura não havia investigação sobre a natureza do Estado Novo enquanto regime político. É também um livro de sociologia política do regime do Estado Novo, talvez o primeiro, evidentemente com lacunas, deficiências, falta de fontes e tudo mais. É ainda uma análise da oposição, talvez a primeira grande história da longa oposição ao Estado Novo”, defende Tiago Fernandes.

Considerado um livro de estratégia política, o professor refere ainda que esta obra “tem um grande sentido da história”, na medida em que Mário Soares acredita que “os acontecimentos que estão a acontecer são resultado de um processo histórico”. E remata: “Mário Soares é uma pessoa profundamente culta do ponto de vista historiográfico. Ele conhece a história do país e isso dá-lhe um ângulo de visão diferente, diria eu, do político comum.”



Matilde Fieschi

Por fim, António Costa Pinto refere a obra de António Alçada Batista, 'Conversas com Marcello Caetano', de 1973. O professor catedrático começa por lembrar o percurso de Alçada Batista, um intelectual católico: “É um intelectual católico que está associado a dinâmicas de modernização muito significativas do mundo católico, do seu ponto de vista cultural." E quando vai conversar com Marcelo Caetano, é importante salientar que “vai produzir um livro que não tem impacto nenhum.”

“É um livro que está muito longe de corresponder a uma versão, digamos assim, do autoritarismo tardio português, equivalente às entrevistas a Salazar de António Ferro”.


Matilde Fieschi

No cinquentenário do 25 de Abril, a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) organizou o ciclo de debates “As Origens Intelectuais da Revolução Portuguesa – as causas dos livros”. Esta primeira sessão foi gravada ao vivo no auditório da BNP a 25 de setembro de 2024. A 8 de abril o Expresso publicará o segundo episódio sobre literatura anticolonial.