
Há poucas coisas mais caricatas do que ler nos jornais que há pessoas que, de vez em quando, se reúnem num restaurante qualquer, para jantarem todos juntos, apenas porque têm entre si uma única característica comum. E tudo serve para tocar a reunir: ou porque são das Beiras, ou porque se chamam Ernesto, ou porque usam bigode, ou porque combateram no Huambo.
O país está cheio de animadas comunidades de pessoas que nada têm a ver umas com as outras a não ser uma coisa qualquer, sem importância absolutamente nenhuma. Querem simplesmente estar uns com os outros. Com um argumento destes, não é nada fácil censurar este entusiasmo gregário.
Até parece mal que não queiramos nós participar uma vez que seja num destes eventos, mais não seja só para ver como é que funciona a teoria do caos aplicada. A serventia de um jantar que reúne pessoas que têm em comum o chamar-se Ernesto é justamente a de não servir para nada a não para que os Ernestos deste mundo possam sair de casa e ir exercer rega-bofe. E daí, quem sabe? Não era no seu “Nome de guerra” que o gigante Almada Negreiros questionava se é o nome que faz a pessoa ou o inverso? Pois se o Mestre o pensa, não se lhe interrompa o devaneio.
Reposição da eletricidade em todo o país
É por razões destas que muitos rejeitam associar o seu nome a grupos de pressão, correntes de opinião, ou de pertencer a entidades políticas, a clubes desportivos. Há, porém, de quando em vez, causas que percebemos que não podemos deixar de acompanhar. Fileiras que devemos engrossar.
Uma delas é a do regresso das Línguas e Culturas Clássicas ao ensino básico e secundário. São muitas, cada vez mais, as vozes que irrompem no universo educativo e mediático defendendo ser possível repor os estudos clássicos, latinos e helénicos, de novo no âmbito do horizonte curricular básico ou secundário português. De facto, o tempo provou que o desaparecimento do estudo das línguas e culturas clássicas provocou consequências nefastas que vão muito para além da mera decadência estética do ler e do escrever ou o desconhecimento crasso da maravilhosa filologia ou etimologia da maior parte das palavras que utilizamos todos os dias.
O estímulo de um contacto direto com as fontes que constroem a matriz europeia, ao contrário de um encerramento sobre a cultura clássica, proporciona uma identidade cultural assente em princípios de convivência universal de vigorosa maturidade e sofisticação.
Outras matrizes históricas e culturais são olimpicamente ignoradas pelo sistema escolar, como a chinesa, a hindu, a africana, só para dar três exemplos clamorosos. É outro intolerável apagão histórico. Sim, continua a ser possível atravessar todos os ciclos de ensino português, sem abordar uma única vez que seja, qualquer uma destas civilizações. São causas que igualmente devemos acompanhar e com veemência.
Sem comunicações
Jacques Brel explicou isto muito bem ao falar das recompensas “Que vão para aqueles que têm a sorte / De aprender desde a infância / Tudo aquilo que não lhes servirá para nada - Rosa, Rosa, Rosam”.
Não se interprete pois, com equívocos populares, o que sustenta este proselitismo classicista, tão novamente europeísta. Não é minimamente aceitável o regresso desta latinidade toda sem profundas remodelações didáticas. É um anacronismo pensar que se possa voltar a ensinar latim ou grego da mesma forma como o faziam muitos há muitas décadas.
Recitar declinações seria hoje, inevitavelmente, um modelo totalmente falido e desligado de orientações pedagógicas ponderadas. Cedo cairíamos todos num desinteresse mortal pelas Línguas e Culturas Clássicas. Esta disciplina, assim concebida, ruiria num único ano letivo, transformando-se numa operação curricularmente frustrante.
A questão é que é hoje possível estudar as civilizações grega e latina, de um modo que pode transformar as Línguas e Culturas Clássicas na disciplina de maior sucesso de todas as disciplinas que hoje ocupam o elenco curricular, tanto no básico como no secundário. Assim, nem mais.
Restabelecer a corrente
Voltar às Línguas e Culturas Clássicas não significa estudar apenas o latim e o grego. Estudar as obras clássicas e não necessariamente a leitura integral da Ilíada e da Odisseia, mas sim a leitura e estudo de objetos tão excitantes como os Kouroi, as cariátides ou a coluna de Trajano, ler os Trabalhos e os Dias de Hesíodo com a sua Pandora, Arquíloco e alguns dos seus fragmentos, a elegia sentimental de Mimnermo, a poesia de Anacreonte, os princípios de Teógnis de Mégara, as odes de louvor de Píndaro, o Prometeu de Ésquilo, os avanços filosóficos de Empédocles sobre a Natureza e muito Platão e o seu Sócrates, muito Aristóteles, Plutarco, ler Lucrécio e o seu De Rerum Natura, Zenão e o estoicismo, Epicuro e o que não é o epicurismo, Safo e o que não é o lesbianismo, Eurípedes e Electra ou a sua Medeia, Sófocles e Antígona, para falar apenas dos gregos.
Quem pense que “excitante” parece adjetivo desajustado, é porque não leu, nem discutiu estas coisas em cafés com amigos até às tantas da manhã, de volta duns copos. Quem pense que isto é irrealista ou absurdo nunca esteve dentro de uma sala de aula a contar devagarinho o enredo detalhado do Édipo-Rei e ver as caras dos miúdos ao perceberem que Jocasta era, afinal, a verdadeira mãe dele.
É impossível não gostar. É impossível não ter opinião. É impossível que um adolescente seja imune ao nível de provocação, horror e controvérsia que estas leituras suscitam. A escola também é o lugar da paixão assolapada.
Sul da Europa sem luz
O regresso de estudos clássicos impõe uma abordagem exortatória destas matérias. Tão excitante e popular como as obras o são. Como o foram na época em que surgiram. Tão contraditórias como são. Oriundas de uma democracia com escravos, pena de morte, exílios forçados e mulheres sem direitos políticos.
O que se tem conseguido é afogar esta verve, esta vivacidade latina, helénica, em dolorosas e extensas apreciações gramaticais e estilísticas que destruíram os estudos clássicos.
Muitos colegas professores seriam sinceramente capazes de lecionar uma disciplina destas com todo o sucesso junto dos alunos. Mas isto implica que uma certa Aurea Mediocritas se dissipe do firmamento, na determinação de tal currículo.
Recuperar os estudos clássicos no ensino básico e secundário envolve muito mais uma reavaliação de estratégias do que uma operação de amanhecer criogénico de um currículo tradicional que já demonstrou consistentemente, há décadas, a sua completa inadaptação à propensão e às ambições dos nossos jovens.
Fornecimento de energia
Pessoas maravilhosas como a grande Maria Helena da Rocha Pereira, Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, distinguida justissimamente com o Prémio Eduardo Lourenço e o prestigiado galardão 2006 da Latinidade, a primeira mulher catedrática da, então vetustíssima, Universidade de Coimbra, a maior autoridade portuguesa neste âmbito, servir-nos-iam de faróis magnânimes para garantir que o essencial não fosse atropelado pelo acessório.
Nunca as suas aulas começavam com a leitura de textos clássicos para analisar. O processo era o inverso. As aulas acabavam sempre a lê-los, porque a conversa, a controvérsia entretanto suscitada, havia convocado a presença de uma ou mais autoridades helénicas.
Platão, Aristófanes, Ésquilo eram nossos colegas de carteira. E um muito mais audacioso e destemido do que o outro. Trazer esta lógica para as aulas do básico e secundário é, não apenas possível, como desejável.
Falta energia no ensino em Portugal. Falta-nos ensino experimental. Experiências destas são estratégicas no nosso país. Uma disciplina de Línguas e Culturas Clássicas representaria para Portugal, para o seu sistema de ensino, o fim de um apagão insuportável.