
Os micróbios, como operários microscópicos, prometem uma nova visão das fábricas do futuro, na base de uma economia sustentável.
É num dos primeiros dias de outubro, já com o outono instalado, a ameaçar a chuva, que chegamos à lezíria de Vila Franca de Xira. Seguimos o trilho dos micróbios entre estradas de areia, a virar aqui e acolá, com os campos divididos entre plantações de milho, amêndoa, arroz ou tomate, acima de tudo o tomate.
Pedro Pinho, produtor e agricultor, é o guia entre estas plantações. Há quatro anos, decidiu apostar nos microrganismos. E nem o dia já com a chuva a cair, com a colheita do tomate quase terminada, o faz perder o sorriso e a energia quando fala de uma agricultura que está a mudar com o uso dos micróbios, com destaque para as bactérias.
"Hoje em dia olhamos muito para os robôs e para a robotização. Na agricultura olhamos para os microrganismos como os operários que nos vão ajudar a continuarmos a ser competitivos", diz.
São dissolvidos na água que entra nos sistemas de rega. É assim que saltam para o solo e começam a trabalhar. “Esta é a grande revolução. Diria que os microrganismos começam muito por aí, ao tornar o solo, o meio onde a planta está, em que sobrevive, que é a base, torná-lo mais resiliente. E se temos um solo mais equilibrado, as plantas também vão estar mais equilibradas", refere. Mas mais que isso, é aquilo que deixa de prejudicar a riqueza que está no chão.
“Permite-nos uma redução significativa de fertilizantes, ou a maximização dos mesmos, quando a gente aplica, e por outro lado na proteção contra pragas e doenças, nós estamos a substituir muitas das ferramentas químicas por microrganismos”, acrescenta.
O impacto na produtividade pode aumentar até mais de 40%, isto de acordo com um estudo da Universidade de Aveiro, realizado em 2023. E estes resultados podem ser determinantes num setor agrícola, o do tomate de indústria, de enorme importância económica para o país.
Portugal é o terceiro maior produtor a nível europeu, apenas atrás de Itália e de Espanha, e um dos maiores do Mundo.
E os micróbios não se ficam pelo tomate, estão também no milho. De Vila Franca de Xira seguimos até Santarém ao encontro de João Coimbra. É um dos maiores produtores do país e considerado pelos pares um dos melhores do Mundo. Os 61 anos guardam a herança de um negócio de família que aqui está instalado há mais de um século.
"O truque é encontrar diversidade. E a agricultura, normalmente, tende a baixar a diversidade. Por isso é que a perda da biodiversidade é tão importante”, diz João Coimbra, enquanto agarra num enorme pedaço de solo, entusiasmado com a riqueza de micróbios, entre fungos e bactérias, que aqui estão.
A colheita já entretanto finalizada abre espaço para o trabalho que agora se inicia. Dentro de um laboratório instalado na quinta deste produtor, cria uma mistura de biodiversidade, alimentada com microrganismos.
“Vai ser aplicado no campo, através de um sistema de rega, que vai misturado com água. E espalhado, com as máquinas de rega, ou com a gota a gota, ou com o pulverizador. Vamos trazer este fermento para cima do nosso solo que está a precisar de cada vez mais biologia”, adianta.
Metade da fertilização já é orgânica. João Coimbra quer, em cinco anos, reduzir totalmente o uso de substâncias nocivas ao solo. “São bactérias que vão promover as micorrizas, que são fungos que se envolvem à volta das raízes das plantas e que muitas vezes os nossos modelos ainda muito tradicionais, muito mobilizados, desapareceram. E estamos a acelerar um processo. São bactérias que são tiradas da natureza e são multiplicadas industrialmente e depois nós colocamos junto às sementes”, diz.
João e Pedro são clientes de uma empresa de Santarém, a Asferglobal, pioneira em Portugal no uso de microrganismos para produzir biofertilizantes e bioestimulantes. Vende para 36 países em todo o Mundo e tem vindo sempre a crescer.
“Era um pouco ingénuo nós ignorarmos a importância desses microrganismos. São como aqueles operários invisíveis, que sustentam toda a dinâmica e toda a regulação que vai havendo no sistema”, diz Patrícia Correia, uma das investigadoras desta multinacional, com sede em Coimbra.
Usam microrganismos de solos agrícolas nacionais que são trazidos para laboratório, onde são estudados, analisados, guardados e depois reproduzidos. “Graças aos compostos bioativos que estes produtos, que estes microrganismos produzem, melhorando o microbioma do solo, vamos ter culturas mais resilientes às alterações climáticas, a fenómenos climatéricos extremos de temperatura ou de falta de água”, refere Joaquim Machado, gestor de projeto da Asfertglobal.
Saúde e Indústria
Entraram na medicina graças a Pasteur, no século XIX, ou a Alexander Fleming, no século XX. Basta pensar na Penicilina e na revolução que permitiu salvar milhões de vidas. Estão hoje presentes em vários tipos de medicamentos.
Foram identificados na base de dados do Infarmed "cerca de 1170 medicamentos autorizados que usam microorganismos na sua produção. Considerando um universo de 18.121 medicamentos autorizados, podemos dizer que serão cerca de 7% dos medicamentos com as características referidas."
Os microrganismos vão mais longe e entram em tratamentos promissores contra vários tipos de cancro. Em dezembro de 2024, a equipa de Carla de Carvalho, professora no Departamento de Bioengenharia do Instituto Superior Técnico, em parceria com a Universidade de Granada, começou a testar em ratinhos uma bactéria recolhida nos Açores em 2015.
A Serratia Rubidaea Produz um composto com propriedades antitumorais que poderá ser, no futuro, uma eventual resposta ao cancro do sistema digestivo.
Carla de Carvalho faz parte de outra investigação que promete uma revolução nas inspeções e controle de qualidade. A investigadora doutorada em biotecnologia e o engenheiro Telmo Santos, do Departamento de Engenharia Mecânica e Industrial da Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade Nova de Lisboa, testaram o potencial das bactérias para detetar microfissuras, erros de construção e defeitos microscópicos.
“A técnica funciona. Ela permite detetar defeitos com alguns milésimos de milímetro em diferentes ligas metálicas, ligas e aço, ligas de magnésio, ligas de titânio, ligas de cobre, e também em materiais poliméricos e materiais cerâmicos. Conseguimos detetar defeitos extremamente reduzidos”, diz Telmo Santos.
Foram usadas duas bactérias da coleção de Carla de Carvalho. É introduzido um componente que torna os micróbios fluorescentes. Assim, quando entram numa fissura ficam brilhantes. Conseguem detetar falhas em estruturas delicadas, como lentes óticas, circuitos eletrónicos ou parafusos usados na medicina dentária. “Se nós conseguirmos logo o sítio possível onde haja uma fissura num parafuso que vai para um implante, nós podemos tentar identificar formas de proteger essa superfície de forma a evitar a aderência de bactérias, essas sim patogénicas”, diz a investigadora.
Do Centro para o Norte do país, a viagem segue um guião escrito pelas marcas que os microrganismos começam a deixar. Entramos no Porto de Matosinhos, a caminho do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental. Estão aqui guardadas cerca de 1200 estirpes de microrganismos, com destaque para as cianobactérias. “São operários que são muito manipuláveis do ponto de vista da sua produção. Nós conseguimos otimizar as condições de cultura. Ou seja, dar-lhe a melhor temperatura, a melhor luz, os melhores nutrientes, para que elas, não só cresçam, mas para que produzam aquelas moléculas que nós pretendemos”, diz Vítor Vasconcelos, diretor do CIIMAR.
Joana Reis de Almeida é uma das investigadoras deste centro. Usa micróbios que substituem os compostos tóxicos usados para pintar os barcos. “Hoje em dia, parece impossível, mas as tintas que atualmente estão em uso ainda contêm 30 por cento de cobre que é um metal pesado altamente poluente. E estamos a falar de 30 por cento", diz a investigadora. "E nós queremos substituir isso, queremos fazer com que as bactérias que nós temos no laboratório possam produzir as moléculas que vão impedir que os navios ganhem aquela incrustação biológica, que é muito negativa do ponto de vista económico, do ponto de vista comercial”, acrescenta Vítor Vasconcelos.
Os micróbios, quase sempre as bactérias, entram também na indústria têxtil. Uma empresa de Barcelos, a RDD, foi mesmo a primeira a colocar no mercado roupa tingida com a ajuda de microrganismos. O uso de pigmentos produzidos por bactérias para substituir os corantes feitos a partir de derivados do petróleo está a ser feito também noutros laboratórios, como é o caso da Kod Bio, que ir mais longe: “construir as grandes fábricas que são as micro fábricas do futuro, que são os microrganismos a produzir exatamente os componentes que nós utilizamos no dia-a-dia”, refere Ricardo Costa, da Kod Bio.
Esta empresa está empenhada em afastar os componentes produzidos pela petroquímica de produtos como detergentes para lavar a loiça ou o chão, sabonetes ou gel de duche, batons ou desmaquilhantes. Recolhem os microrganismos, por exemplo, na linha de costa que anda entre Matosinhos e Leça da Palmeira, entre o mal e o solo. São depois trabalhados e multiplicados em laboratório. “Então, um microrganismo é capaz de se replicar e dar origem às biomoléculas, que é o que nós fazemos aqui na Kod Bio, para dar mais tarde origem aos bioprodutos”, refere Ricardo Costa.
É ainda aproveitado o lixo que pode vezes acaba por ficar nos aterros. "Estes microrganismos precisam de uma fonte de alimento e a fonte de alimento onde está? Está nos resíduos”, diz o responsável pela Kod Bio. “Não é lixo, é mesmo um recurso. É um conjunto de nutrientes que está aqui concentrado e que depois pode ser usado como alimento para os microrganismos”, acrescenta Telmo Machado, Gestor Unidade Produtos Sustentáveis da LIPOR, que recolhe o lixo na zona metropolitana do Porto.
“Nós criamos aqui o conceito da bioeconomia ligado à economia circular. Portanto, é um sistema perfeito”, diz Ricardo Costa, deixando em aberto a ideia de que, com os micróbios dentro destas fábricas do futuro, há uma revolução que está em curso.