Pyramiden já foi a maior cidade do arquipélago norueguês de Svalbard, nas profundezas do Ártico. Até ser abandonada, em 1998, viviam aqui, entre mineiros e famílias, 2500 pessoas. Mais do que as que residem hoje na capital do arquipélago, Longyearbyen, a três horas de barco.

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Posto avançado da União Soviética para lá da cortina de ferro, a cidade mineira era uma utopia do comunismo, a montra de uma sociedade perfeita para o Ocidente ver. Tinha uma rua chamada Broadway, um edifício Londres e outro Paris, destinados aos habitantes solteiros de ambos os sexos.

Um outro prédio, conhecido como a casa dos doidos, albergava apenas famílias. Durante os meses de escuridão total, as crianças raramente saíam à rua. Os gritos das brincadeiras ecoavam pelos andares do edifício e ouviam-se à distância.

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“Ninguém pode sair à rua sem uma arma”

Elena Konavskikh conduz-nos por esta localidade parada no tempo. Trabalha aqui, nos meses de verão, como guia turística. Deixou São Petersburgo por causa da guerra que a Rússia impôs à Ucrânia. Mas foi aqui que pegou numa arma pela primeira vez.

"Estamos num sítio perigoso, território dos ursos polares, ninguém pode sair à rua sem uma arma ou na companhia de um guia armado", reforça Elena, que confessa ter-se apaixonado por Pyramiden.

"Vivemos com ursos, renas, raposas. Vemos como crescem, mudam o pelo. Era assim que todos devíamos viver", resume. "Adoro a atmosfera, o cenário, a história de Pyramiden. É um sítio lindo, rodeado de montanhas".

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"Queriam mostrar que a vida na URSS era perfeita”

Nos tempos áureos, quando a cidade era uma montra do comunismo, o requinte e o luxo conviviam em Pyramiden. Elena conta que a cidade tinha bandas de jazz e uma orquestra.

Havia uma piscina olímpica com água do fiorde aquecida a 27 graus, uma cantina gratuita e aberta 24 horas por dia - para cobrir todos os turnos da mina - escola e creche, e um hospital com todas as especialidades.

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"Queriam mostrar que a vida na URSS era perfeita. Os salários eram muito altos. Os trabalhadores ficavam aqui cerca de dois anos e ganhavam o suficiente para comprar uma casa e um carro, na Rússia. Todos queriam vir trabalhar para Pyramiden", conta Elena.

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A cidade tinha uma aparência arejada, mas a mão pesada do regime também se sentia aqui. "Havia polícia, claro. O KGB estava aqui e controlava tudo. Era proibido falar com estrangeiros, por exemplo."

A Rússia está em Svalbard desde que se descobriu que o arquipélago é rico em carvão. A corrida à exploração mineira levou à assinatura do tratado de Svalbard, em 1920. A soberania do território foi entregue à Noruega, mas os países que assinaram o documento - hoje, mais de 40 - ficaram com direitos iguais no acesso aos recursos naturais da região.

“Demorei cinco segundos a dizer que sim”

Durante décadas, os soviéticos mantiveram duas cidades no Ártico - Pyramiden e Barenstsburg, ambas na maior ilha do arquipélago, Spitsbergen. Mas os custos eram exorbitantes. No final dos anos 90, com a rentabilidade das minas em queda, Moscovo optou por manter apenas uma das comunidades. A 17 de outubro de 1998, Pyramiden viu sair os últimos residentes. Para trás ficou apenas um homem, com a missão de guardar o local.

"Chamaram-me ao gabinete e achei que tinha feito algo de mal. Os chefes disseram-me: vamos fechar Pyramiden. Queremos que fique aqui alguém, que terá de ficar sozinho. Tu és caçador, tens experiência com armas, sabes línguas, sabes usar as mãos, e não és alcoólico. Aceitas? Demorei cinco segundos a dizer que sim."

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Jochen Monning nasceu na Alemanha de Leste 20 anos antes da queda do muro de Berlim. Em Pyramiden reencontrou uma utopia que julgava perdida. Ficou aqui, sozinho, durante quase três anos. Conta que o maior desafio que enfrentou foi uma dor de dentes.

"Estava a enlouquecer com dores e tinha de fazer alguma coisa. Então, bebi um shot de vodka, peguei num alicate e arranquei o dente. Depois, bebi novamente um shot de vodka", conta.

Quase três décadas depois, Jochen mantém-se o guardião desta cidade abandonada. Todos os dias, sem fins de semana nem férias, faz a ronda por Pyramiden às 5:30 da manhã, para garantir que não há ursos na localidade.

“O importante para lidar com os ursos é não ser agressivo nem mostrar medo”

Conta que nunca teve de usar a arma. Dá nomes aos ursos, fala com eles em russo, e os animais obedecem-lhe. "Temos o Hooligan e a Sveta, que são irmãos. Ele chama-se assim porque gosta de destruir coisas." Jochen diz que o importante, para lidar com os ursos, é não ser agressivo nem mostrar medo.

"Eles conhecem-me, eu conheço-os. Eu digo-lhes “vão-se embora” e eles vão. Sabem que falo a sério. Por isso entendemo-nos bem."

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A única estrutura de Pyramiden que se mantém em funcionamento é o hotel, renovado há três anos. No verão, os turistas chegam diariamente de barco para uma visita de duas horas. A maioria parte no mesmo dia. Os que ficam estão proibidos de sair à rua sem um guia armado.

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De verão, a Rússia mantém em Pyramiden cerca de 20 funcionários, sobretudo por conta do hotel e das visitas turísticas. Mas durante o longo inverno, apenas duas pessoas permanecem na cidade. Jochen é uma delas.

Pyramiden “a voltar à vida”

A Rússia sabe que o futuro passa pelo Ártico e por Svalbard. O arquipélago tem recursos e rotas marítimas, é geopolítica que o Kremlin não pode descurar. Entre os planos para dinamizar a cidade está o investimento no turismo e a criação na cidade de um centro de pesquisa científica.

"Eu gosto de Pyramiden assim, sem ninguém, mas também gosto que esteja a voltar à vida."

Até janeiro de 2021 a presença da Rússia em Svalbard era pacífica. Mas a invasão da Ucrânia levou a Noruega a impor um embargo às empresas russas no arquipélago, incluindo operadores turísticos. Desde então, apenas um barco mantém a ligação de três horas entre a capital do arquipélago e a antiga cidade mineira.

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Quando o inverno polar se aproxima, Svalbard começa a perder 15 minutos de luz por dia, até que a noite se instala e as viagens de barco são suspensas deixando Pyramiden inacessível. Durante oito meses, a cidade fantasma permanece isolada nas profundezas do Ártico.

Ficha Técnica:

Jornalista: Susana André

Imagem e Drone: Joel Santos e Magali Tarouca

Repórter de imagem: João Pedro Fontes

Edição de Imagem: Tomás Pires

Grafismo: Paulo Alves

Colorista: Rui Branquinho

Pós-produção Áudio: Edgar Keats

Produção: Ana Marisa Silva

Coordenação: Marta Brito dos Reis

Direção: Bernardo Ferrão