Recentemente, Henrique Raposo, cronista do Expresso há longos anos, publicou um texto intitulado “Recuso ser visto por um médico que só quer fazer 150 horas extraordinárias”, em que, a dado momento, escreveu: "Sem o trabalho além do horário de funcionário, um médico não será um médico, será um enfermeiro com mais galões no ombro."

Esta afirmação não só reflete uma visão desinformada sobre a profissão de enfermeiro, como perpetua preconceitos que são ofensivos e desrespeitosos para uma profissão central em qualquer sistema de saúde.

E não é a primeira vez que Henrique Raposo adota um tom depreciativo em relação aos enfermeiros. Poderíamos, simplesmente, interpretá-lo como fruto de ignorância ou falta de compreensão sobre o que realmente significa ser enfermeiro, mas é importante que se aborde esta questão através de uma dimensão mais ampla: o papel dos enfermeiros no sistema de saúde, a evolução da profissão e a visão, ainda distorcida, de alguns segmentos da sociedade.

Aquela frase carrega, implicitamente, a ideia, completamente errada, de que os enfermeiros seriam uma versão "menor" de médicos. Ora, a enfermagem é uma profissão autónoma, regulamentada e baseada em evidências científicas, com um corpo de conhecimentos próprio que a diferencia de qualquer outra profissão de saúde.

Ser enfermeiro não é "um passo a menos" para ser médico, é uma escolha consciente e uma vocação que exige competências específicas e um olhar distinto sobre a saúde. Os enfermeiros não querem ser médicos. Não porque lhes falte qualquer capacidade, mas porque escolheram uma profissão que está enraizada em algo que vai além do diagnóstico e do tratamento: o cuidado humanizado, contínuo e integral, que coloca o doente no centro de todos os atos.

Além disso, a ideia de que a enfermagem pode ser "funcionalizada" — ou seja, limitada a horários rígidos de trabalho — também mostra uma total falta de compreensão sobre a realidade. Os enfermeiros dedicam-se a um trabalho que não é compatível com um horário normal, acompanham o doente em todos os momentos da vida, da entrada à saída do sistema de saúde, da prevenção à reabilitação. Contudo, este compromisso não pode ser confundido com esgotamento ou exploração laboral.

Na enfermagem, o trabalho fora do horário normal é uma realidade comum, mas deve ser encarado como um esforço excecional e não como norma. Aliás, os enfermeiros são os campeões das horas extraordinárias no SNS, um reflexo da carência crónica de recursos humanos e da crescente pressão sobre o sistema de saúde. Estas horas, realizadas frequentemente em condições de exaustão física e emocional, representam muito mais do que números em folhas de cálculo: são um testemunho da dedicação de quem, muitas vezes, sacrifica o seu bem-estar e vida pessoal para garantir a continuidade dos cuidados prestados aos doentes. O verdadeiro compromisso com a saúde não se mede em horas extraordinárias, mas na capacidade de manter a excelência sem comprometer a saúde mental e física do profissional.

A romantização do trabalho extenuante, destacada por Henrique Raposo, revela uma visão perigosa sobre as profissões de saúde. Não se é melhor enfermeiro ou médico pelo número de horas extraordinárias realizadas, mas pela competência, ética e pela capacidade de oferecer um cuidado seguro e eficaz. Exigir que profissionais de saúde se submetam a um esgotamento extremo para provar o seu valor é, no mínimo, uma irresponsabilidade que coloca em risco os profissionais e os doentes.

Nos últimos 50 anos, a enfermagem passou por uma evolução exponencial, tanto em Portugal como no mundo. Hoje, é uma área de alta especialização, com enfermeiros a assumir funções autónomas e a desempenhar papéis fundamentais em todas as áreas clínicas e também na gestão de serviços de saúde, docência, investigação, etc.

É importante que os mais desatentos saibam que, atualmente, os enfermeiros portugueses lideram projetos de inovação em saúde, desenvolvem investigação científica e participam na formulação de políticas públicas de saúde. Esta evolução, bem como a dedicação de gerações de enfermeiros que lutaram por educação de qualidade, regulamentação profissional e condições dignas de trabalho, contribuiu para um maior reconhecimento social da profissão.

Apesar deste avanço, ainda há um caminho a percorrer. A sociedade, embora cada vez mais consciente do papel essencial dos enfermeiros, continua a precisar de ser esclarecida, como demonstra o texto de Henrique Raposo.

A enfermagem é uma profissão nobre, cuja dedicação é direcionada exclusivamente para o bem-estar do outro. Subestimar o valor de um enfermeiro é, em última análise, desrespeitar todos aqueles que diariamente contribuem para salvar vidas e melhorar a saúde dos portugueses.

Quem minimiza o trabalho dos enfermeiros, ignora a complexidade da sua intervenção, o impacto que tem na vida dos doentes e o esforço diário necessário para exercer a profissão. A crítica, baseada numa visão distorcida, revela, afinal, mais sobre a falta de conhecimento de quem a profere do que sobre a realidade da enfermagem.

Os enfermeiros não são heróis acidentais nem coadjuvantes no palco da saúde. São protagonistas indispensáveis, cuja dedicação vai além de qualquer reconhecimento superficial.

Comentários como os de Henrique Raposo não diminuem a força, a grandeza ou a importância da enfermagem. Mas, ainda assim, seria bom que se pudesse retratar junto dos seus leitores.

Por fim, a todos enfermeiros portugueses que se sentiram ofendidos, e foram muitos, quero dizer-vos que são insubstituíveis. O vosso papel não é menor, é único e essencial. A dignidade da profissão de enfermeiro merece ser respeitada, valorizada e, acima de tudo, compreendida. E, mesmo diante de visões distorcidas, jamais desistam de lutar por um futuro mais humano e justo para todos.