
A questão das eleições na Ucrânia não é inocente. Na União Europeia, defendemos como princípio de que as eleições devem ser livres, justas e sem manipulações. Um imperativo ausente na Rússia, mas respeitado nos estados-membros e na própria Ucrânia. A verdadeira questão não parece ser a legitimidade de Volodymyr Zelensky perante os cidadãos ucranianos, mas uma tentativa para descredibilizar um dos maiores símbolo da resistência ucraniana. Curiosamente, aqueles que mais insistiram durante os últimos meses na necessidade de eleições na Ucrânia, tendem a ser os mesmos que nunca as exigiriam na Rússia de Vladimir Putin.
De acordo com a Constituição ucraniana e legislação específica, as eleições não podem ocorrer sob lei marcial. A segurança nacional e a unidade interna são, obviamente, prioritárias. Não é por acaso que, no âmbito do direito internacional, impera o princípio da continuidade constitucional do Estado. O mesmo estipula que a estabilidade governativa deve ser preservada em tempos de crise, evitando que a situação se agrave devido a um vazio de poder. Nesta mesma linha, o Artigo 15º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos permite a derrogação de algumas obrigações em circunstâncias excecionais, como no caso de guerra. Podemos, portanto, afirmar, que o adiamento das eleições na Ucrânia, nas circunstâncias atuais, não implica uma violação do direito internacional, uma vez que pretende garantir que o Estado continue a cumprir as suas funções básicas, incluindo a proteção dos seus cidadãos e a defesa da sua soberania.
Internamente, não parece também que a oposição acredite que Volodymyr Zelensky seja um autocrata em potência. Uma sondagem recente revelou que 66% dos ucranianos são contra a realização de eleições enquanto a guerra continuar, enquanto adversários reconhecidos do Presidente da Ucrânia, como Petro Poroshenko e Yulia Tymoshenko, já reconhecerem que realizar eleições nestas circunstâncias seria perigoso. Não restam dúvidas, portanto, que Zelensky é o líder legítimo da Ucrânia. O Parlamento, com 268 votos a favor e 12 ausentes, reafirmou a importância de manter a atual liderança, precisamente quando Trump o qualificava de ditador.
As declarações de Donald Trump, após a infame reunião na Sala Oval, acabaram por ter o efeito contrário ao desejado, desencadeando uma onda de solidariedade, tanto a nível nacional como internacional. A taxa de aprovação interna de Zelensky aumentou de 57% em fevereiro para 69% no final de março, reforçando a perceção de que qualquer pressão, vinda de Washington ou de Moscovo, mais ou menos óbvia, falhará. Aqueles que suspiram pelo General Zaluzhnyi, ou por um presidente que ceda à agenda maximalista de Putin ou ao colonialismo económico imposto por Trump, terão de esperar.
A Europa, afastada da mesa das negociações, não tanto pelos seus deméritos, mas pela lógica de esferas de influência que parece ter regressado, reafirmou que a Ucrânia é uma democracia e que Zelensky foi legitimamente eleito em eleições livres. O apoio incondicional a Zelensky, assim como o despertar geopolítico europeu, parecem sustentados na opinião pública europeia, que segundo o Eurobarómetro, continua decisivamente a favor do investimento em segurança e defesa.
Deste lado do Atlântico, a mensagem é clara: perante um desafio inédito, a maioria dos cidadãos defende que a União Europeia deve reforçar o investimento em Segurança e Defesa. Mas se a Europa realmente aspira a evitar que a Ucrânia seja sacrificada em nome das normalização das relações entre a Rússia e os Estados Unidos, não pode perder tempo com Conselhos Europeus inconsequentes e exteriorizações de vontades equívocas.
No seio da União Europeia, o Plano Kallas, que dobraria a ajuda em defesa à Ucrânia, passou de 40 mil milhões para 5 mil milhões, não tendo sido, mesmo assim, consensualizado no último Conselho Europeu, mas uma semana depois, em Paris. Na mesma linha, os sstados-membros foram incapazes de chegar a um acordo sobre o instrumento SAFE, que concederá empréstimos no valor de 150 mil milhões de euros para financiar investimentos em capacidades de Defesa. Alguns estados-membros, especialmente do Sul, exigem que o mesmo inclua também subvenções, e não apenas empréstimos, adotando o modelo implementado durante a pandemia – o Next Generation EU. Esta proposta tem vindo a ser rejeitada liminarmente pela Áustria, Países Baixos e Suécia, alguns dos chamados Estados “frugais”, mas restam poucas dúvidas que o Plano ReArm Europe e os 150 mil milhões em empréstimos dificilmente serão suficientes para alavancar o esforço de guerra ucraniano e compensar o afastamento definitivo dos Estados Unidos da NATO, pelo menos, a curto ou médio prazo.
Mas a chave para conter Putin não pode passar somente pela União Europeia. A força de manutenção de paz, proposta por Keir Starmer e por Emmanuel Macron, precisará certamente do apoio dos Estados Unidos, mas enviaria um sinal claro ao Kremlin de que qualquer acordo de cessar-fogo não poderá ser uma desculpa para a Rússia se rearmar e reiniciar o conflito, quando assim entender. Evitar um novo Acordo de Minsk II exigirá verdadeiras garantias de segurança, que poderão ser alavancadas no confisco de ativos soberanos russos e na manutenção da sanções, incluindo a sua exclusão da utilização do sistema SWIFT.
Qualquer negociação deverá impor condições claras que impeçam um desfecho que beneficie o Kremlin. Devemos resistir, também, à tentação de pensar que poderemos apaziguar Putin através de concessões “razoáveis” ou controlar a intempestividade de Trump. Padecer o síndrome de Chamberlain ou de Von Papen, nesta fase, seria o golpe final à credibilidade da Europa e à sua capacidade para garantir a sobrevivência da Ucrânia e impedir que a arquitetura de segurança europeia seja discutida sem os europeus na mesa das negociações.
A questão das eleições na Ucrânia transcende um simples debate sobre prazos democráticos. É mais uma frente de batalha entre aqueles que reconhecem o direito da Ucrânia a manter a sua soberania e aqueles que defendem, à luz de um certo tipo de realismo, que deveria simplesmente render-se face a um gigante militar com pés (económicos) de barro.
O argumento não colhe, porque as eleições em tempos de guerra não são nem uma obrigação legal, nem uma necessidade democrática, quando não podem ser livres ou seguras. E convém lembrar que a ausência de eleições, não significa, necessariamente, a ausência de legitimidade. A pressão para a realização de eleições nestas circunstâncias pode ser interpretada como uma de duas coisas: uma leviandade de quem se encontra a milhas da frente de batalha ou uma vontade mal disfarçada de que a Ucrânia ceda, finalmente, perante o Kremlin, marcando assim o regresso de Ialta, das esferas de influência e o ocaso da União Europeia.
Zelenskyy, no entanto, poderá ter-se antecipado, segundo o The Economist, podendo convocar eleições já para o verão. Caso venha a confirmar-se, o fim da lei marcial é condição essencial e um cessar-fogo até abril pode abrir caminho para uma votação em julho. Ironicamente, Donald Trump e Vladimir Putin, antes defensores do escrutínio, parecem agora temer o fortalecimento do presidente ucraniano. Aguardemos para ver se, na Europa, aqueles que ontem exigiam eleições, ainda as querem hoje.
A questão será se os líderes europeus estarão preparados para defender a Ucrânia e a Europa até às últimas consequências, ou acabarão por ceder, em nome de uma ilusória normalização. As próximas decisões, ou indecisões, dirão se aprendemos alguma coisa com a história ou se estamos, mais um vez, condenados a repeti-la.