
A Cáritas Portugal defende que é “urgente um novo impulso na luta contra a pobreza e a exclusão em Portugal”, face aos “ténues progressos” nos últimos anos, alertando para a inevitável inversão do ciclo económico face aos riscos geopolíticos.
Na segunda edição do estudo “Pobreza e Exclusão social em Portugal: uma visão da Cáritas”, que é apresentado esta terça-feira, a Cáritas faz um retrato da realidade nacional tendo em conta os que vivem em situação de pobreza ou em privação severa, tendo por base os indicadores do Instituto Nacional de Estatística (INE), cujos dados mais recentes foram publicados em dezembro, e do Eurostat.
A Cáritas aponta que, genericamente, “todos concordam na conclusão de menores progressos na luta contra a pobreza no período recente”, apesar de os resultados mostrarem uma redução da população que vive em risco de pobreza ou exclusão social, que passou de 21,1% em 2019 para 19,7% em 2024, por exemplo.
Segundo a Instituição, esses resultados foram conseguidos graças a uma fase muito favorável na economia portuguesa, com “fortes crescimentos do emprego, dos salários reais, das pensões, das transferências sociais e, globalmente, do rendimento disponível real das famílias” nos últimos anos.
Alerta que “inevitavelmente, o ciclo económico irá inverter no futuro” e que “tendo em conta os atuais riscos geopolíticos globais, este é um cenário cada vez mais provável”, chamando a atenção que uma eventual crise económica inverteria “os ténues progressos registados nos últimos anos”.
“É assim urgente um novo impulso na luta contra a pobreza e a exclusão em Portugal”, refere a organização oficial da Igreja Católica em Portugal.
Salienta que os objetivos definidos na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-30 “são ambiciosos e a estratégia multidisciplinar preconizada é desejável”, mas acredita que com as atuais tendências esses objetivos “não serão alcançáveis”.
“A convergência atempada para aqueles objetivos exigirá um investimento muito maior da sociedade na luta contra a pobreza. Este investimento inclui dimensões como o funcionamento das instituições e dos mercados, bem como o papel das políticas públicas, em termos da redistribuição do rendimento e da garantia de acesso a serviços públicos”, defende a Cáritas.
Na análise que faz aos dados disponíveis, a Cáritas constata que Portugal “continua a apresentar um dos menores contributos das transferências sociais (excluindo pensões) para a redução do risco de pobreza, não só no conjunto da população, mas também das crianças” e alerta para o eventual impacto intergeracional em dimensões como a educação, a saúde, a produtividade no trabalho ou a confiança nas instituições.
“Progressos adicionais exigirão intervenções de natureza mais estrutural e mais focadas nos segmentos de maior exclusão”, defende.
Mais pedidos de ajuda de Imigrantes - uma pobreza “invisível” nos dados oficiais
O estudo aponta também para uma “tendência recente muito relevante” de aumento de pedidos de ajuda por parte de imigrantes, salientado que as estatísticas oficiais sobre pobreza ou exclusão “ainda têm dificuldade em captar esta realidade”, mas que ela está presente no “dia-a-dia da rede Cáritas”.
“As estatísticas oficiais a nível europeu resultam de inquéritos a pessoas que vivem estritamente em alojamentos familiares habituais, tendo por base a informação dos Censos. Não incluem assim as pessoas em situação de sem abrigo, os reclusos nas prisões, os nacionais ou migrantes que vivem em alojamentos temporários ou as comunidades nómadas”, refere a Cáritas.
“Vários destes casos, invisíveis nas estatísticas oficiais, recorrem ao apoio da rede Cáritas distribuída em todo o país”, acrescenta.
Para a Cáritas, há duas estatísticas que importa ter em conta no caso das pessoas imigrantes: o número de estrangeiros com estatuto legal de residente e o número de estrangeiros por conta de outrem inscritos na Segurança Social.
Refere, por um lado, que “os trabalhadores estrangeiros têm sido fundamentais para sustentar o aumento de emprego em Portugal nos últimos anos”, mas salienta, por outro, que a rapidez com que isso tem acontecido “tem levantado desafios de integração a todas as estruturas da sociedade”, tanto no mercado de trabalho, como no mercado de habitação, na rede pública de apoios sociais e nas estruturas sociais e culturais de acolhimento dos imigrantes.
Segundo a Cáritas, os dados estatísticos disponíveis demonstram que “os imigrantes têm, em média, uma maior vulnerabilidade à pobreza e exclusão social” e que na zona Euro a taxa de privação severa dos nacionais de cada país situava-se em 5,3%, o que compara com 12,8% nos indivíduos com cidadania estrangeira.
“Em contraste, em Portugal, as estatísticas oficiais sugerem que a taxa de privação material e social severa era idêntica entre os nacionais e estrangeiros (4,9%)”, mas defende uma leitura mais atenta deste “resultado surpreendente”, já que a população estrangeira inquirida “não abarca a realidade completa dos imigrantes a viver em Portugal”.
A Cáritas refere que, por razões metodológicas, são incluídos apenas estrangeiros com residência estável e integrados no mercado de trabalho e que, por isso, “as situações de maior privação na população estrangeira não estarão a ser bem captadas” no inquérito levado a cabo pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
A Cáritas acredita, por isso, que “à medida que as estatísticas oficiais começarem a abarcar de forma mais fidedigna esta realidade, será de esperar um maior contributo dos estrangeiros para as taxas de risco de pobreza e de privação material e social em Portugal”.
Aumento do número de sem-abrigo e múltiplas dificuldades no acesso à habitação
Portugal continua com situações de privação habitacional muito severa, denuncia a Cáritas, apontando para o “aumento dramático” de pessoas a viver em condição de sem-abrigo e alertando que as dificuldades em relação à habitação afetam múltiplos segmentos da população.
No mesmo estudo, tendo por base os indicadores do Instituto Nacional de Estatística (INE), e do Eurostat, a instituição da Igreja Católica em Portugal refere que “a sua expressão mais absoluta, é imediato constatar o aumento dramático do número de pessoas em situação de sem-abrigo”, com base no levantamento feito através do Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, realizado em 2023.
Nesse ano foram registadas 13.100 pessoas a viver nessa condição, depois de terem sido 10.800 em 2022, 9.600 em 2021, 8.200 no ano antes, 7.100 em 2019 e 6.000 em 2018.
“Este aumento terá persistido ao longo do último ano. Estas situações-limite exigem intervenções multidisciplinares, que vão além da falta de habitação”, defende a Cáritas.
De acordo com o organismo, as dificuldades em encontrar ou manter uma habitação afetam “múltiplos segmentos da população” e são explicadas “com o aumento acentuado das rendas e dos preços da habitação”.
“O acesso a uma habitação adequada tem-se revelado cada vez mais desafiante. Esta é uma das razões que sustenta a permanência muito maior dos jovens em casa dos pais em Portugal, em comparação com os restantes países europeus”, aponta.
Revela, por outro lado, que na rede Cáritas, constituída por 20 Cáritas Diocesanas, “nos últimos anos, têm sido inúmeros os pedidos de ajuda para pagamento de rendas”.
“Este é um sinal claro de dificuldade de muitas famílias em assegurar essas prestações”, aponta.
Destaca que, em 2023, quase 5% da população vivia em sobrecarga das despesas de habitação, ao mesmo tempo que foi registado “um forte aumento, para 12,9%” da taxa de sobrelotação de habitação.
A taxa de privação severa das condições de habitação aumentou para 6%, depois de ter estado nos 4,1% em 2019, incluindo situações de falta de casa de banho ou sanita com autoclismo, teto que deixa passar água ou humidade nas paredes, entre outros.
A Cáritas alerta que são as crianças e as famílias com rendimentos mais baixos que “registam maior privação severa das condições de habitação” e lembra como, no caso das crianças, isso impede que haja igualdade de oportunidades e influencia “toda a sua vida futura”.
O estudo indica que Portugal está “numa posição intermédia em termos da prevalência da pobreza e da privação”, mas alerta que isso não deve ser visto com complacência, mas antes ser encarado como um desígnio nacional para alcançar os “resultados já observados em vários países europeus, que se situam mais próximos do horizonte de erradicação da pobreza e da exclusão”.
Defende, por outro lado, que “há questões estruturais e de aposta em políticas pré-distributivas e redistributivas que justificam o facto de Portugal ainda se situar longe” da erradicação da pobreza, salientando como, nos últimos anos, os progressos têm sido mais modestos.
“Entre 2015 e 2019, o aumento do emprego foi a base para a queda acentuada das situações de pobreza e privação em Portugal”, enquanto “no período mais recente, num quadro de quase pleno emprego no mercado de trabalho, os progressos na luta contra a pobreza têm-se revelado mais ténues”.
Segundo a Cáritas, tem havido dimensões onde se tem constatado “um retrocesso”, como no caso do número de pessoas sem capacidade para ter uma alimentação adequada ou no número de pessoas sem-abrigo.