
Ao longo do último século, poucos eixos diplomáticos moldaram tão profundamente o destino da Europa como a relação entre os Estados Unidos e a Alemanha. Foi este entendimento transatlântico que sustentou a reconstrução do pós-guerra, lançou as bases da integração europeia e garantiu, entre inúmeras hesitações e desafios, a manutenção da ordem liberal.
Hoje, porém, algo mudou. A primeira visita oficial do chanceler Friedrich Merz à Casa Branca, num cenário marcado pela guerra na Ucrânia e pelo regresso das tensões comerciais, obriga-nos a perguntar: o que resta da velha aliança? Que lições perduram dos tempos em que estadistas desenhavam o futuro com bússolas e não apenas com sondagens?
Walter Isaacson, em “The Wise Men”, traça o retrato de seis figuras centrais da política externa americana do pós-guerra: Dean Acheson, George Kennan, Charles Bohlen, Robert Lovett, Averell Harriman e John McCloy.
Diferentes nas biografias, convergiam num internacionalismo esclarecido, com a convicção de que o poder implicava responsabilidade e que a segurança dos Estados Unidos passava pela estabilidade do mundo. Foi Acheson quem, com uma lucidez quase visionária, impulsionou o Plano Marshall. O seu argumento era simples: uma Europa em ruínas representava uma ameaça tão real como qualquer inimigo armado. A recuperação económica era, acima de tudo, uma estratégia de contenção e de esperança.
Do lado europeu, o calibre não ficava aquém. Konrad Adenauer entendeu que a reconciliação com a França e a integração no novo projeto europeu eram o único caminho para restaurar a dignidade alemã. Willy Brandt ousou virar-se para Leste, abrindo canais com a República Democrática Alemã numa altura em que poucos o achariam prudente ou possível. Helmut Kohl, por fim, soube fazer da reunificação um ato de diplomacia paciente, ancorando a nova Alemanha numa NATO em expansão e numa União Europeia em construção.
A ideia central é que estes homens não representavam apenas os seus países. Foram os construtores de uma ordem. Falharam muitas vezes, mas nunca desistiram de pensar a longo prazo.
O Plano Marshall foi muito mais do que um programa de assistência económica. Foi a pedra angular de uma nova arquitetura internacional. A Alemanha Ocidental, reconstruída com apoio americano, transformou-se num parceiro confiável. A fundação da NATO institucionalizou uma aliança militar duradoura. A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, ainda tímida, apontava já para uma integração política.
Durante a Guerra Fria, essa parceria foi sinónimo de contenção do expansionismo soviético, mas também de uma ideia de liberdade sustentada na cooperação. Em 1990, a reunificação alemã testou essa aliança. George H. W. Bush e Helmut Kohl foram capazes de demonstrar que apesar da velocidade da história, a mesma pode ser moldada. O presente é certamente menos imponente.
A visita de Merz à Casa Branca acontece num tempo de guerra em território europeu, de incerteza quanto ao papel da América na NATO e de crescente desconforto económico transatlântico. Merz tenta projetar uma Alemanha responsável, pivô da estabilidade europeia. Trump continua a ver o mundo como um conjunto de contas por acertar. Entre impostos alfandegários sobre produtos e acusações de aproveitamento, paira um mal-estar profundo, mas falta sobretudo uma ideia partilhada do mundo.
A agenda da reunião era densa. Definir as linhas vermelhas perante Moscovo, coordenar o apoio a Kiev, debater o potencial confisco dos ativos russos e a "situação" em Gaza. Preparar as próximas cimeiras do G7 e da NATO, em junho, mas também desativar a ameaça de uma guerra comercial sem limites. Cada um destes temas exige algo que há muito parece ausente: confiança pessoal, visão comum e lideranças que não se esgotem em agendas pessoais ou ciclos noticiosos. O contraste com os estadistas do pós-guerra não podia ser mais gritante.
A diferença fundamental está na erosão do consenso estratégico que sustentava a diplomacia ocidental. Os chamados “Wise Men”, tal como os grandes líderes europeus, entendiam que a liderança exigia compromissos difíceis e muita paciência. Hoje, a personalização da política externa, a fragmentação e a pressão mediática criaram um terreno pantanoso.
A aliança entre os Estados Unidos e a Europa, outrora alicerçada na confiança e ambição partilhadas, arrisca-se a ceder sob o peso de divergências comerciais, clivagens políticas e ausência de figuras galvanizadoras. Podemos dizer, sem exagero, que a diplomacia deixou de se concentrar na construção e passou a centrar-se sobretudo na sobrevivência.
Apesar disso, a relação transatlântica continua a ser essencial. Para a segurança da Europa. Para a coesão do Ocidente. Para um mundo onde a força não substitua o direito internacional, que está longe de ser apenas um conjunto de princípios abstratos.
A Alemanha tem a responsabilidade de liderar, não por nostalgia, mas por necessidade. Os Estados Unidos, mesmo sob uma liderança errática, continuam a ser o garante da dissuasão estratégica. O futuro dependerá da capacidade de reinventar o espírito de 1945 sem necessariamente o imitar. Passa por recuperar o pragmatismo, o sentido de missão e a clareza moral. E exigirá líderes menos obcecados com o presente e mais atentos ao que está em causa. O que está em jogo é a paz e a liberdade – nada menos do que isso.
A história da relação entre os EUA e a Alemanha é, em boa medida, a história da Europa moderna. Uma história de alianças forjadas no sofrimento, mantidas pela prudência e agora ameaçadas pela mediocridade. Mas o encontro entre Merz e Trump na Casa Branca não podia ser mais ilustrativo do momento em que vivemos.
Enquanto Monnet erguia ideias e Bevin forjava alianças, Acheson e Adenauer salvavam a Europa do caos e da tirania, o chanceler alemão não pôde fazer mais do que pedir a Donald Trump que, pelo menos, não tratasse o invadido como o invasor, o invasor como o invadido.
Friedrich Merz deslocou-se a Washington para pedir mais pressão sobre Moscovo. Saiu de lá com uma parábola infantil. Este, como tantos outros episódios na Sala Oval, recorda-nos quem é Donald Trump: um presidente que transformou a Casa Branca num reality show e a política externa americana num jogo de espelhos narcísico.
Quando Truman afirmava que "the buck stops here", assumia a responsabilidade como um dever de estadista. Com Trump, o "buck" dissolve-se num nevoeiro de teorias da conspiração, retaliações pessoais e slogans ocasionalmente escritos em maiúsculas. É cada vez mais difícil conciliar este perfil com a cadeira que foi ocupada por Roosevelt, que moldou a ordem liberal, ou John F. Kennedy, cuja frieza evitou uma guerra nuclear.
Todos eles lembram-nos que a diplomacia se faz de continuidade e rutura, de memória e de reinvenção. E que a política externa pode ser, por vezes, a arte de criar, a partir das cinzas, uma ordem.
Hoje, entre o cinismo e a apatia, entre Donald Trump e aqueles que ainda acreditam que o podem controlar ou convencer, o risco é regressarmos apenas às cinzas – sem ordem, sem visão e sem ninguém, ao que parece, disposto a pensar na ordem que há de vir.