
Quatro páginas de documento, duas páginas de texto, uma lista de subscritores por preencher e uma data de apresentação incompleta. O manifesto "Por um Portugal, Livre, Justo e Solidário", começou a saltar de telemóvel em telemóvel no início deste ano, mas quando chegou ao WhatsApp de alguns dirigentes do Bloco de Esquerda ainda não tinha sido "reencaminhado demasiadas vezes". Nem foi preciso. A existência do documento por si só bastou para o núcleo duro de Mariana Mortágua somar dois mais dois e desconfiar que está em curso a criação de um novo partido, promovida pela corrente de críticos. À cabeça, Pedro Soares.
As desconfianças agudizaram-se na última semana com o anúncio de que 70 militantes de Portalegre se preparavam para abandonar o partido, em discordância com a linha política seguida pela direção. A notícia fez manchete em todos jornais, foi divulgada a carta de renúncia dos 73 militantes, e a história acabou a ser contrariada pela direção do partido. "Dos 70 pedidos de demissão, nós não recebemos sequer 20", garantia Mariana Mortágua na segunda-feira, ao mesmo tempo que apontava ao grupo de críticos internos: "Este grupo escolheu sair do Bloco de Esquerda de forma parcial mas organizada, usando essas saídas de forma tática, para não dizer outra coisa. Isto tem uma leitura política interna".
Essa leitura está clara numa carta enviada pela comissão política do Bloco de Esquerda aos militantes de Portalegre, a que a SIC teve acesso, onde é referido que está em curso uma "ofensiva comunicacional contra o Bloco", com recurso "à intoxicação política", como parte do "processo de abandono público do Bloco por elementos de uma corrente interna - a Convergência - que esteve na origem da moção E". Tudo isto acontece, pode-se ler na mesma carta, "ao mesmo tempo que circulam apelos à subscrição de um novo movimento fora do Bloco". Na mesma linha, Francisco Louça utilizou as redes sociais para acusar diretamente a "a corrente de Pedro Soares" de "avançar para a criação de um novo partido".
O manifesto mistério
"Enviaram-me o manifesto, mas não o vou subscrever. Não estou a pensar nisso", garante Pedro Soares em declarações à SIC. O principal rosto crítico da direção de Mariana Mortágua, diz que recebeu há uns dias o manifesto "Por um Portugal Livre Justo e Solidário", já teve oportunidade de o ler, mas afasta-se de qualquer tipo de envolvimento no projeto. Questionado sobre se conhece o autor do texto - que não está assinado - Pedro Soares não fala em nomes: "acho que é uma coisa que está em preparação com pessoas que não são do Bloco". De facto, o autor do manifesto nunca pertenceu ao Bloco.
Jorge Bateira, economista e antigo professor universitário, foi militante do Partido Socialista e há vários anos que tenta lançar uma plataforma à esquerda. "Em 2017 lancei uma associação chamada Democracia Solidária que deixou de ter atividade pouco tempo depois", começa por contar em declarações à SIC. Explica que em janeiro do ano passado tentou relançar a mesma associação, com recolha de assinaturas, "para ver se pegava, mas não pegou."
Um ano depois, alterou o texto original do manifesto e voltou a distribuí-lo: "O texto é da minha autoria. É a minha última tentativa de relançar o que em tempos foi a Democracia Solidária. Ando a recolher assinaturas e a fazer contactos." Até agora conseguiu 70 assinaturas para o que um dia admite que possa ser um partido político. "Isso fica em aberto no texto. A constituição de um partido político não está excluída".
"Sair? Não lhes vou dar essa alegria"
Jorge Bateira garante que a derradeira tentativa de relançar a associação nada tem a ver com o momento político que vive o Bloco de Esquerda - "o que me levou a fazer isto foi a conjuntura internacional" - mas reconhece que o projeto pode interessar a militantes ou ex militantes que estejam descontentes com o partido, nomeadamente o rosto da oposição interna - "o Pedro Soares pode estar interessado".
Pedro Soares continua a jurar a pés juntos que o lugar a que pertence é e será o Bloco de Esquerda - "Sair? Não lhes vou dar essa alegria. Não está no meu horizonte sair do partido", diz em declarações à SIC, ao mesmo tempo que lamenta o comportamento de alguns dirigentes do partido - "uma direção que está a convidar pessoas para se ir embora… é lamentável."
Depois de ser eleito para os órgãos do partido em 2022 (já se demitiu da Comissão Política), Pedro Soares prepara-se para regressar à condição de militante de base. Na próxima convenção, em maio, a Moção E não se apresenta a votos: "não queremos continuar a participar em órgãos de direção com aquela maioria, que continua a legitimar-se como direção democrática às nossas custas, quando na verdade somos permanentemente ignorados", diz Pedro Soares sabendo que foi ganhando voz própria no espaço público e mediático. "Queremos que o partido mude. Não preciso de continuar nos órgãos do partido para continuar na luta."